O julgamento da Operação Fizz que começou em Lisboa não é só um teste (e um desafio) à solidez das relações entre Angola e Portugal; é sobretudo um teste (e um desafio) à solidez do Estado de direito. Ambos os planos são importantes. Não podemos achar um mais importante do que o outro; mas não podemos deixar um na sombra por cuidarmos apenas do outro.

A atenção política e jornalística a respeito do caso tem-se focado no ângulo das relações Angola/Portugal. A atenção económica, também – é de presumir. E é natural que assim seja: um caso em que é suspeito, entre outros, uma figura como o Eng.º Manuel Vicente, personalidade relevante na elite dirigente angolana, ex-líder da Sonangol, ex-Vice-Presidente de Angola (dado como possível sucessor de José Eduardo dos Santos), actualmente deputado de relevo na Assembleia Nacional, não poderia deixar de incendiar a curiosidade, adensar as especulações e multiplicar as pressões. Não é de estranhar. Mas é de lamentar que, em Portugal, seja essa a abordagem quase exclusiva, apagando o outro plano, de grave risco para todos: o risco em que está colocado o Estado de direito.

Quem considere da mais alta relevância as relações entre Portugal e Angola só pode desejar que isto não estivesse a acontecer. Quem deseje que as relações entre angolanos e portugueses fluam e floresçam em clima de amizade franca, cooperação estreita e intercâmbio aberto só pode querer que esta prova não existisse. Mas, para que não estivéssemos confrontados com este transe, era essencial que não se tivesse gerado a suspeita de corrupção de um alto magistrado do Ministério Público. Não é uma questão de somenos. Como pode sugerir-se ao Ministério Público que ignorasse um caso de corrupção? Como ignoraria logo o Ministério Público a corrupção, possivelmente, de um dos seus?

O Presidente da República de Angola, João Lourenço, tem vindo a conduzir uma vasta agenda de mudança e de reformas, que gera compreensão e simpatia generalizadas dentro do país e internacionalmente. É muito importante acompanhar esse desenvolvimento da política angolana e significar apreço, apoio e aplauso por cada um dos passos que sejam dados e consolidados na rota de tornar Angola uma grande Nação democrática, com pleno Estado de direito, crescimento económico sólido e intenso, justa distribuição da riqueza, administração descentralizada e uma sociedade de bem-estar. Tudo o que possamos fazer para ajudar a esse caminho, apoiando os angolanos e as suas autoridades, é bem-vindo ao futuro.

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É compreensível o mal-estar que as autoridades angolanas expressam perante este caso. Também elas, sem dúvida, desejariam que isto nunca tivesse acontecido. E é perfeitamente compreensível que o Presidente angolano dê voz a esse desconforto. Não poderíamos esperar outra coisa. Mas não é correcto dizer-se que a Justiça portuguesa disse que não confiava na Justiça angolana, assim como quem diz “nós somos bons, vocês não prestam”. Nunca tal coisa foi dita – tanto quanto sei, nem sequer foi sugerida. Seria uma enormidade intolerável. Não pode confundir-se um título de imprensa bombástico, escrevendo uma interpretação incendiária, com as posições escritas oficiais da Procuradoria ou do tribunal. E é muito mau que, em Portugal, vozes qualificadas e experimentadas da política ecoem, com falsidade, um juízo que nunca foi proferido, multiplicando pressões infundadas sobre os nossos magistrados e os nossos tribunais. Assim como é mau que, em Portugal, se acuse a Justiça portuguesa de negligenciar e ofender acordos internacionais celebrados no âmbito da CPLP, mostrando essas mesmas vozes enorme leviandade na leitura dos acordos e no relato dos factos.

Por que estaria a Justiça portuguesa a violar deveres de cooperação judiciária com Angola, ao não ter remetido à Justiça angolana o caso relativo ao Eng.º Manuel Vicente, e a Justiça angolana não teria violado esses mesmos deveres de cooperação judiciária ao não ter procedido à notificação que lhe foi solicitada? Face à recusa dessa notificação essencial, em nenhum momento a Justiça portuguesa se agitou – nem tão-pouco a política –, antes se mantendo o caso unicamente no recato dos trâmites processuais apropriados.

Além disso, embora possa parecer paradoxal, o não envio do caso para Angola não revelou falta de respeito pela Justiça angolana, mas, ao invés, respeito por esta, nos precisos condicionalismos próprios que comunicou: imunidade e amnistia – condicionalismos que impedem, por si mesmos, a remessa do processo. Aliás, como já foi revelado e não desmentido, a mais relevante comunicação da Procuradoria-Geral de Angola para Lisboa, fez-se acompanhar do parecer de um grupo de trabalho angolano que esclarecia que o entendimento jurídico em Angola era o de que, havendo amnistia aplicável, o pedido de cooperação a Portugal não caberia “por faltar a condição da punibilidade no direito angolano” – ou seja, um entendimento similar à Justiça portuguesa.

Infelizmente, vozes há que, umas, querem intoxicar e incendiar o ambiente e, outras, lamber botas e favorecer negócios com sectores dirigentes angolanos. São essas vozes que põem tudo em perigo, ou por ligeireza, ou para atear paixões. Li, por exemplo, esta pergunta, que sucumbe à intoxicação: “Se fosse um Vice-Presidente Americano ou Chinês, será que a justiça portuguesa os tratava da mesma forma que está a tratar o ex-Vice-Presidente da República de Angola?” Não tenho sobre isso a mais pequena dúvida: o tratamento judiciário seria exactamente o mesmo. O tratamento político é que talvez não: provavelmente choveriam chicotes para o americano, vénias para o chinês. Mas, seguindo a jogar o jogo do absurdo, pode formular-se outra pergunta: e se um alto dirigente português fosse suspeito de corromper um alto magistrado angolano, como agiria a Procuradoria-Geral de Angola? E a imprensa oficial do país?

Imagino a mágoa, a dor e o embaraço da nossa Procuradoria-Geral por ter de acusar um dos seus de um crime infamante: arquivar processos a troco de dinheiro. Mas em nenhum momento se ouviu ou sequer se sentiu da parte da Justiça portuguesa histeria, indignação, bravata ou vozeirão. Tudo tem decorrido com tranquilidade e rigor, nos carris e na cadência do processo. Assim é que está bem.

Pela sua delicadeza, este caso merece cabeça fria e nervos de aço, percorrendo, sem ofensas mútuas, nem histerias, as respectivas etapas, com pleno respeito pelos dois Estados, as suas instituições e as suas leis, na clara percepção da gravidade dos factos postos a julgamento. Como tem sido reclamado, este caso exige estadistas, que saibam percorrer, com consciência das suas responsabilidades uma estrada efectivamente cheia de buracos, de lombas e de riscos e, por isso, reclamando rectidão de propósito, serenidade de espírito e firmeza de caminho. Naquilo que tenho observado, creio que, apesar das dificuldades e da grande sensibilidade do caso, têm mostrado sentido de Estado o Presidente João Lourenço e o ministro das Relações Exteriores de Angola, assim como os nossos Presidente da República, primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros. Mas a maior mostra de sentido de Estado tem vindo precisamente da Procuradoria-Geral da República e dos tribunais. O sentido de Estado de que precisamos é o sentido de Estado de direito, não uma traficância qualquer.

O Estado de direito sabe funcionar. As suas instituições funcionam tanto melhor quanto menores as pressões que sobre elas se abatem e quando não se lhes introduz o veneno da manipulação. O cortejo de políticos, mais ou menos retirados, dedicados a empresas ou escritórios, do PSD, do PS e do CDS, entre os quais antigos responsáveis dos Negócios Estrangeiros e um antigo líder, opinando de modo alarmista e enviesado e exercendo pressão sobre o curso do processo, deixa-nos ficar muito mal como país e contribui para uma percepção errada do que se passa e pode acontecer.

Não sabemos se os factos serão provados ou não provados – e quais factos. Não sabemos se haverá, ou não, condenações. Não sabemos se o processo na parte relativa ao Eng.º Manuel Vicente decairá, prosseguirá ou acabará remetido para Angola. Mas, se houver absolvições ou remessa parcial para a Justiça angolana, o caso só merecerá crédito público, se for exclusivamente tratado e decidido nos tribunais, com as regras e os meios do Direito. As pressões políticas desacreditam as próprias absolvições, quanto mais outros caminhos e destinos processuais.

O Presidente João Lourenço conduz em Angola, segundo vários discursos que tem feito, reformas também contra a corrupção, contra a impunidade, pela independência do poder judicial, pelo reforço do Estado de direito. Seria um péssimo serviço que prestaríamos a nós próprios e também à visão que em Angola se tem da nossa Justiça, se, mercê de um vendaval mediático, atropelássemos a independência e seriedade de juízo dos tribunais, por subordinarmos a Justiça aos poderosos, ao peso do dinheiro, ao sopro dos interesses políticos. Este caso é também um enorme observatório: estamos todos a ver quase tudo. Se o processo soçobrasse no pântano, nós perderíamos imenso nos dois tabuleiros: no das relações com Angola e no nosso Estado de direito. E a reforma angolana também sofreria – e de que maneira.

É curioso que esses políticos portugueses que tanto tentam intrometer-se e pressionar são useiros e vezeiros no uso do brocardo “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”. Muitas vezes a frase é usada de modo mal interpretado – um dia explicarei porquê. Mas àqueles que tanto repetem o estribilho, devemos reclamar-lhes que o respeitem e cumpram: não metam a política na Justiça.

Eu quero que as relações Portugal/Angola e Angola/Portugal se preservem e cresçam sempre. É muito importante e muito bom. E quero também que o Estado de direito se consolide tanto em Portugal, como em Angola, porque acredito que é o melhor para os dois Estados e para os dois povos. A forma de prosseguir os dois objectivos é segui-los ao mesmo tempo, a par e passo, não deixando que a preocupação com um atropele o outro.