Caro Leitor, para compreender a vida política, é essencial conhecer o conceito de Estado de Direito, que pode ser definido simplesmente como um Estado que se limita, organiza e busca a sua legitimidade através do Direito, obedecendo a princípios fundamentais e superiores à mera lei, como os consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim, distingue-se de um Estado de mera legalidade, em que apenas releva o ser-legal e não o dever-ser-legal. Num Estado de Direito, não basta existir uma lei a permitir ou a ausência de uma lei a proibir para algo ser aceitável, pois há leis que devem necessariamente existir, como as leis que concretizam a Constituição.

Aquilo que os órgãos de soberania devem, podem e não podem fazer está escrito desde que a vontade do povo, onde reside a soberania da República, formalizou a ideia de Direito que quis para nos reger, primeiro elegendo os Deputados à Assembleia Constituinte e, posteriormente, os que efetuaram revisões à Constituição.

Mas escrevo-vos que o nosso Estado de Direito está ferido e isto não se baseia numa mera classificação baseada em mais ou menos critérios, mas sim numa análise ao cumprimento e violação daquilo que este deve ser. E, para falar do estado do Estado de Direito, não posso deixar de falar no estado do Direito, isto é, do conjunto das normas que nos regem e a sua vigência efetiva.

Há casos gritantes, que me deixam triste enquanto cidadão, enquanto jovem que perspetiva uma vida em Portugal e enquanto estudante de Direito que perspetiva uma carreira:

A Procuradora-Geral da República (PGR), Lucília Gago, determinou que fosse cumprido um parecer do seu Conselho Consultivo (CCPGR), que obriga, em razão da hierarquia, os magistrados a cumprirem com as ordens dadas pelos superiores no desempenho das suas funções, sem constarem sequer estas ordens do processo. Assim, a PGR consagra em si controlo de todos os casos na alçada do Ministério Público (MP), sem ser possível o escrutínio, pois não se sabe quem realmente tomou a decisão. Este caso tem-se alongado e teve mediatismo, o que mais serve para mostrar que não há medo do povo e que tudo pode ser feito. É, além disto, um caso bastante grave porque acaba por condicionar a investigação e o cumprimento da Justiça em todos os outros casos.

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Por exemplo, o MP mandou vigiar e fotografar jornalistas, para o que seria necessário mandado de um tribunal superior. Tal mandado nunca existiu, mas a PSP cumpriu com a ordem, violando os direitos de cidadãos e, mais especificamente, dos profissionais do jornalismo. Quem vai investigar o caso? O Ministério Público.

Também conhecerá que, após a escolha de Ana Carla Almeida por um júri europeu independente para a Procuradoria Europeia, o Governo de Portugal e o Ministério da Justiça tiveram intervenção direta, mentindo sobre o percurso e mérito de José Guerra para que fosse este o representante do Estado português. A Presidência do Conselho, agora responsabilidade do Governo de António Costa, tal como o Primeiro-Ministro António Costa, achou irrelevante esta manipulação. As investigações do MP não inspiram confiança, como já foi visto, restando apenas o Parlamento Europeu como última linha de defesa da independência e da verdade na formação da Procuradoria Europeia.

Na mesma ordem de ideias, cabem todos os crimes menores que passam impunes por conveniência, como a falsificação de documentos pela Deputada do PS, Hortense Martins, para não ser implicada em outros crimes, tendo sido esta falsificação arquivada por apenas mil euros. Crimes como os implicados no caso das golas antifumo, que levou a várias demissões no Executivo, mas que não inspiram também confiança para o seu desfecho.

Sou certamente parcial quando digo que não me inspiram confiança, mas sou também fundamentado quando explico que se A nomeia B e B controla C, C não é independente para investigar D, amigo ou colega de A.

Se uma Deputada pode escapar-se a um crime tão facilmente, o que conseguirá fazer um ex-primeiro-ministro? O que conseguirá fazer alguém com as ligações certas a dados grupos económicos ou políticos? Se nos discursos prometem igualdade de oportunidades, na sua atuação violam a igualdade perante a lei, que é muito mais básica e fundamental. Nunca exisitirá igualdade de oportunidades se tenho de nascer rico ou fazer carreira na Juventude Socialista, ou na JSD, para ter as mesmas oportunidades que alguém.

E são várias as considerações que se podem fazer sobre o Direito e para que serve, quais são as suas prioridades, mas, sem profundidade, penso que o leitor concordará que é de extrema relevância que a população confie na Justiça. Esta confiança é necessária para que as pessoas se sintam seguras: “Se alguma injustiça me acontecer, serei restituído pelos danos causados?”, mas também para que não se levantem populismos e desejos de justiça popular.

Para que os nossos direitos fundamentais não sejam palavras mortas nas páginas da Constituição, urge lutar por uma maior e efetiva independência entre quem investiga e quem é investigado, urge lutar por um cumprimento da lei para todos, mas urge também que a responsabilização política aconteça: felizmente, e por enquanto, ainda temos um país em que podemos confiar nos resultados das eleições, por isso, somos nós os últimos juízes.

É este o estado do Direito no nosso Estado de Direito, no meio termo para deixar de o ser, como outros na Europa.

Sob pena de a nossa democracia nos escapar por entre os dedos, lutemos para trazer o justo de volta à Justiça.