Há coisas de que vale a pena falar e outras que o melhor é calar. Entre as últimas, conta-se indiscutivelmente o nosso Presidente da República. É um caso exemplar de como a vacuidade produz o sem-sentido. Sobre a questão dos direitos humanos do Qatar, emitiu um “e tal” que englobava um sem-número de violências e costumes pouco amenos. Depois, deu-lhe para dizer que iria àquele solarengo país falar dos direitos humanos – que devem ter sido o principal objecto da sua cavaqueira com Fidel de Castro, que visitou mal foi eleito, contente que nem um cuco por o ter, enquanto presidente, apanhado ainda vivo. A gente imagina os indígenas prostrando-se diante dele, reverenciosos: “Louvado seja Deus, Senhor dos Mundos! Eis um novo guia para os piedosos!”. São tantas destas e com tal frequência que o mais recomendável é pensar que ele, tirando quando se apresenta como apêndice espúrio do Governo, de facto não existe. Porque é mesmo difícil acreditar que alguém assim exista. Em todo o caso, o dispêndio de imaginação para acreditar é declaradamente excessivo.

Se não vale a pena falar de Marcelo, já que se corre o risco de confundir a ficção com a realidade, vale a pena, em contrapartida, falar de António Costa. Até porque o seu poder é muito efectivo e algumas das suas características mais salientes se têm manifestado de forma cada vez mais acentuada. Tomemos, muito brevemente, três exemplos.

Primeiro, a reacção ao livro de Luís Rosa sobre Carlos Costa. António Costa explodiu e prometeu levar Carlos Costa a tribunal. Porquê? Porque Carlos Costa relata no livro um telefonema seu, logo a seguir a uma conversa de Carlos Costa com Isabel dos Santos, em que o primeiro-ministro lhe teria dito que “não se pode tratar mal a filha do Presidente de um país amigo de Portugal”. Isto num tom que Carlos Costa qualificou, na óptima entrevista que Maria João Avillez lhe fez para a CNN, como “agreste”. Não discuto o telefonema em si nem a questão, obviamente importantíssima, da intromissão na esfera do Banco de Portugal. É o estilo de Costa que me interessa: a ira que transparece nas suas declarações imediatamente após a publicação de um excerto do livro no Observador do dia 10. Como se ela não fosse apenas a expressão de um excesso passageiro e revelasse um fundo constitutivo do carácter. Não um mero acidente: uma essência.

Em segundo lugar, o discurso que ele fez, dia 19, num encontro socialista na Covilhã. Aí apelava os socialistas a manterem “nervos de aço” face àqueles que “não perdoam aos portugueses terem garantido a estabilidade necessária para fazer as reformas” e “tudo fazem e tudo farão para comprometer a estabilidade que os portugueses decidiram que era necessária para responder à crise e construir um futuro sólido de confiança”. Passo por cima da misteriosa menção das reformas porque, de comum acordo, não parece ser algo que o entusiasme desmesuradamente, mas enfim… São os exigidos “nervos de aço” e a designação da oposição como uma entidade genérica que se quer vingar dos portugueses (“não lhes perdoa”) que merecem curiosidade. Porque o que ele no fundo faz é identificar as críticas ao seu Governo com um ataque rancoroso ao bom povo português que o elegeu. Daí a necessidade de “nervos de aço” (quais os seus, supõe-se) para defender os portugueses das críticas que, aparentemente visando-o a ele, a oposição lhes endereça. Claro que é um pedaço de retórica política partidária para animar as hostes, talvez um pouco confusas com as últimas barafundas no Governo. Mas, ao mesmo tempo, nessa sua confusão voluntária com o próprio povo, há algo de inquietante. Há, no mínimo, uma muito elevada ideia de si mesmo.

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Por fim, a fatídica questão da sua prometida viagem ao Qatar. António Costa está possuído por uma indomável vontade de ir apoiar in loco a nossa selecção, talvez convencido que sem a sua presença o ânimo dos guerreiros esmoreceria. Mais uma vez, atentemos às suas palavras: “Apoiamos no Qatar, em França, na Índia, na China, na Rússia. Apoiamos onde a selecção estiver.” Ora, eis algo que está muito bem. Acontece que o problema não está em apoiar: está em ir lá, como representante de Portugal. Iria lá, se o campeonato do mundo tivesse lugar hoje no Irão ou, exemplo que ele dá, na Rússia? Segundo ele diz, iria (“Apoiamos”, no sentido de “vamos lá como representantes de Portugal”, “onde a selecção estiver”). E aí é que está o mal. Não que o Qatar seja caso único de regime pouco recomendável, pelas razões de que toda a gente fala e pelo apoio incondicional ao Hamas, por exemplo. Os campeonatos do mundo de futebol, tal como os Jogos Olímpicos, já tiveram lugar em países com regimes facinorosos. Mas isso não é razão para que o primeiro-ministro lá vá, com a intenção de nos representar.

Além de que a questão coloca outro problema mais vasto. Que o comum dos cidadãos deposite uma confiança sanguínea naquilo que não depende dele, que não depende da sua deliberação e da sua acção, vá lá que vá. Todos nós fazemos isso, aqui e ali, e o futebol, sob este ponto de vista, é até um lugar conveniente para o exercício dessas paixões irracionais. O caso muda de figura com “as mais altas figuras da nação”. Uma pessoa põe-se a pensar que elas comandam o nosso destino de acordo com esse mesmo princípio de confiança naquilo que deles não depende (exceptuo naturalmente o caso em que usem os cofres da nação para subornarem os árbitros) – uma hipótese que quase se torna verosímil se atentarmos na sua patente crença no efeito mágico da sua presença para o desempenho da selecção.

De qualquer maneira, a imagem que muitos já haviam formado de António Costa surge reforçada por aquilo que vimos dele nos últimos dias. A tendência, por exemplo, para tomar por verdadeiro aquilo que lhe dá jeito e recusar como falso aquilo que o prejudica (o que já me aconteceu chamar, e peço desculpa por me citar, teoria da verdade jeitosa). É uma tendência muito forte nele. Ou ainda o autoritarismo. Há nele uma aparente (e falsa) bonomia, embora a jocosidade e o gozo sejam reais, como são reais, ainda mais reais, o desprezo, a irritação e a cólera. Esta última é, de resto, muito curiosa e marca decididamente o seu estilo. Lembram-se daquela cena com o velhote que o interpelou no Terreiro do Paço e que ele aparentemente quase agrediu? Havia algo de simultaneamente real e encenado naquela cólera. A parte encenada era a parte de alguém que se julga, face aos inferiores, com o direito a ser colérico.

Era a cólera que se transformou numa segunda natureza de alguém que se habituou a julgar-se superior aos outros, alguém para quem a cólera é uma espécie de direito conquistado – o que explica o tom “agreste” com que se dirigiu a Carlos Costa, segundo este último conta. A cólera é aqui a marca de uma classe, uma marca que se encontra sempre disponível a ser usada quando a sua vontade é contrariada.

Naturalmente, para uma pessoa assim as críticas que lhe possam fazer (um dever da oposição, será necessário salientar?) exigem que se mobilizem “nervos de aço”. E os juízos políticos negativos, como aqueles feitos sobre a sua ida ao Qatar, participam do pecado maior de não reconhecerem a excepcionalidade de quem é. São, por definição, juízos de inferiores, que nem sequer merecerão verdadeira cólera: a jocosidade basta. Um homem com estas características é um homem extremamente perigoso. A sua auto-suficiência condena-o ao autoritarismo e à vontade de dominar todas as forças que, face a ele, apresentem sinais de autonomia.

É a altura de nos perguntarmos porque é que o PS é tão propício a que personalidades destas – Costa depois de Sócrates – assumam a chefia do partido. O último artigo de Helena Matos aqui no Observador coloca, de certa maneira, esta questão. É que, por muito diferentes que sejam as personagens, algo no seu estilo é comum: nomeadamente a cólera (o “animal feroz”) e o sentimento de uma indiscutível superioridade. Eis uma resposta muito tentativa: são, no fundo, caricaturas de Mário Soares. Caricaturas, sublinho, já que juntá-los no mesmo parágrafo me causa um verdadeiro incómodo. Porque o Mário Soares que conta – o que não conta pode aqui ser deixado em silêncio, pois o que conta conta muito – tinha algo de semelhante a essas características como uma espécie de dom natural e não como um privilégio adquirido e elas nele conviviam com várias outras que nas suas caricaturas primam pela ausência, como, por exemplo (até mais em Costa do que em Sócrates, diga-se de passagem), uma visão para Portugal. Como de costume, os epígonos aprendem apenas os traços mais grosseiros dos mestres, sendo cegos para o que neles há de mais valioso. Na política como no resto.