Quando ninguém estava à espera, José Sócrates voltou. E, estranhamente, estando em causa um egocêntrico furioso, não voltou por vontade própria — voltou por conveniência do Partido Socialista. Primeiro, foi António Costa. No debate sobre o Orçamento do Estado, o atual líder do PS declarou ser o orgulhoso herdeiro de uma nobre linhagem de antigos primeiros-ministros que combateram a pobreza indígena e multiplicaram a riqueza nacional — e onde incluiu, num luminoso lugar de destaque, José Sócrates.

Dois dias depois, foi a vez do pré-candidato presidencial Augusto Santos Silva. Em entrevista à CNN, o ainda presidente do Parlamento declarou, com solenidade e orgulho, que o primeiro governo de Sócrates “foi um dos mais reformistas que o país teve”; acrescentou, com severidade e desgosto, que o segundo governo de Sócrates “caiu nas consequências da crise e também da impossibilidade de conseguir um acordo no parlamento que nos permitisse escapar à troika”; e terminou, com cinismo e dissimulação, afirmando que todas as outras “questões” relativas a Sócrates serão tratadas num “julgamento que ainda nem começou”, sendo que, naturalmente, “as pessoas são inocentes até ao trânsito em julgado”.

António Costa e Augusto Santos Silva falam de José Sócrates como se fosse um político normal. Mas esquecem, ou tentam esquecer, ou tentam fazer com que nos esqueçamos, que ninguém precisa de um julgamento — menos ainda do trânsito em julgado de uma eventual condenação — para saber que Sócrates não é um político normal. Não são precisas provas: o próprio José Sócrates admitiu que recebia dinheiro em notas para viver acima das suas possibilidades. E as justificações para isso são tão abstrusas que incluem a afirmação, feita pelos seus advogados, de que este recurso ao dinheiro vivo se justificava por o ex-primeiro-ministro “não confiar nos modos normais de circulação de fundos”.

Não é preciso haver um crime para existir uma vergonha. E, como consequência disso, não é preciso haver um julgamento criminal para existir um julgamento político. Tudo o que já se conhece sobre a vida de José Sócrates deveria ser suficiente para António Costa e Augusto Santos Silva manterem tanta distância dele como do vírus do Ébola.

E, no entanto, algo se move. Numa mesma semana, os dois principais dirigentes do PS agitaram o nome de José Sócrates de forma pública e com orgulho, como se fosse um estandarte ou uma medalha. Não sabemos se é uma coincidência ou um plano — mas é seguramente um sinal. Como diz a frase célebre, “Se anda como um pato, se nada como um pato e se grasna como um pato, então é porque é um pato”. Esteja sentado em São Bento ou esteja a candidatar-se a Belém, este PS está disponível para, através de um banho lustral, transformar Sócrates num exemplo. Costuma dizer-se, lembrando os Bourbons, que não aprenderam nada, nem esqueceram nada. Mas eu temo que se lembrem de tudo e que tenham aprendido demasiado.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR