Após os péssimos resultados dos partidos à direita em Portugal e com a perturbação que isto gerou, é natural que se busquem referências animadoras noutras paragens que aparentem tê-las para oferecer. É o caso do Reino Unido, onde Boris Johnson conquistou a muito ambicionada maioria absoluta. E, ainda por cima, amplamente confortável: os conservadores alcançaram 43,6% da votação e elegeram 365 deputados, 40 mandatos acima da metade e mais 47 do que há dois anos.

É uma vitória notável, na verdade. Mas, ao contrário de alguns artigos de opinião que pude ler, ver nesta vitória de Boris Johnson uma inspiração radiosa para a direita portuguesa, que directamente possa servir de guia para as escolhas que tem de fazer nos próximos congressos e meses seguintes, é um disparate de todo o tamanho, fonte de enganos e inevitáveis frustrações. A vitória de Boris Johnson, à parte o êxito fulgurante da sua determinação (esta sim, sempre uma lição importante), nada pode ensinar para cá do Canal da Mancha.

Já em 2015, o triunfo eleitoral de David Cameron nas eleições de Maio alimentou um corrupio de ilusões sobre o que poderia passar-se também em Portugal. E a sugestão poderia ser tentadora. O governo britânico, embora fora da zona euro, estava a sair também de um período de austeridade e, sem embargo disto, os conservadores conquistavam, sozinhos, a maioria absoluta – o preço do desgaste (e do voto útil) foi pago, sozinho, por Nick Clegg e seus liberais-democratas, em virtude das peculiaridades do sistema eleitoral britânico, passando a coligação a ser dispensável para David Cameron. Alguns comentadores podem talvez insistir na ideia errada (mil vezes repetida) de PSD/CDS também terem ganho as eleições de Outubro de 2015. Mas não é verdade: os conservadores de Cameron ganharam com maioria absoluta, que foi justamente aquilo que faltou à PàF e era obviamente imprescindível.

O êxito de Cameron esfumou-se num só ano; mas, curiosamente, deixou os dois legados que, depois de muitas voltas, serviram a Boris Johnson para ganhar agora e de forma categórica. Esses legados foram o Brexit – cujo referendo fez cair Cameron – e o precioso Jeremy Corbyn, que sucedeu a Ed Miliband na liderança trabalhista depois de derrotado por Cameron.

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A retumbante vitória de Boris Johnson apenas se pode entender neste exacto contexto. Por um lado, focou a estratégia e o discurso numa única palavra de ordem: “Let’s have it done” – o “it” era o Brexit. Por outro lado, contou com a preciosa ajuda, à frente da oposição, do mais admirável canastrão de que há memória viva na alta política britânica: Jeremy Corbyn, um esquerdista desastrado que até conseguiu atrair sobre os trabalhistas suspeitas e acusações de anti-semitismo.

Theresa May, nas eleições que precipitou em 2017, falhou o reforço da maioria a que aspirava para poder conduzir a travessia do Brexit com pulso e segurança. Mas foi buscar lã e saiu tosquiada, ficando dependente de equilíbrios parlamentares incertos e mais vulnerável também às divisões internas do seu partido. Sabemos como terminou. Acabaria atolada nas areias movediças de Westminster, com a Câmara dos Comuns a chumbar tudo e o seu contrário.

Boris Johnson, quando sucede a May, empreendeu uma arriscada fuga em frente, que o pôs em perigo várias vezes. Mas acaba por ter sucesso, conquistando a maioria folgada que Theresa May não conseguira.

O triunfo categórico de Johnson, em Dezembro de 2019, não decorre de qualquer linha política sofisticada ou de quaisquer propostas eleitorais em especial, senão do foco exclusivo em concretizar o Brexit e do talento táctico para encurralar Corbyn. As sondagens mostravam há meses que os conservadores iriam vencer; mas era preciso que Corbyn aceitasse ir a votos – para se afundar. Foi aí que o líder trabalhista foi politicamente cercado, após novas rondas de votações — sucessivas, contraditórias e bloqueadoras – na Câmara dos Comuns.

Boris Johnson não definiu qualquer novo eleitorado: chamou o fiel eleitorado conservador de sempre, engrossado com o do UKIP, que voltou a casa, aproveitou as divisões e o desalento dos trabalhistas e arrastou mais alguns, mobilizados para acabar com a contínua e degradante comédia do Brexit nos Comuns. Por ironia, quase que podia imaginar o glorioso speaker John Bercow a gritar “Order! Order! Order!” ao lado de Boris Johnson. Nas urnas, “Order! Order!” era dar uma maioria clara aos conservadores.

A hora de Johnson chegou apenas por estas duas alavancas políticas, habilmente accionadas: o Brexit e Corbyn. Ora, não há Brexit, nem Corbyn fora do Reino Unido. Não é imaginável que, em Portugal, a direita pudesse embrenhar-se numa estratégia Portexit, muito menos com sucesso, e à esquerda não há nenhum Corbyn que pudesse fazer o jeitinho.

Além disso, quando traçamos paralelos doutrinários ou de substância política com o Reino Unido, é quase certo que falhamos, como qualquer um se dá conta, ao apear-se do deslumbramento. No Reino Unido, tudo é diferente. O sistema eleitoral é maioritário uninominal, não é proporcional – a conversão em mandatos seria completamente diferente, assim como as dinâmicas eleitorais e as relações de forças geradas. O sistema de governo é puramente parlamentar, com aquele aconchego monárquico, relevante do ponto de vista histórico, nacional e das instituições. E os próprios partidos têm uma longuíssima história, absolutamente inconfundível com os partidos da Europa continental e, nomeadamente, os portugueses.

O Partido Conservador é toda a direita britânica e parte do centro desde 1678, ainda no século XVII. Nós não temos nada disto. Mesmo indo apenas à data que os Conservadores apresentam como de sua fundação oficial, 1834, estamos a falar de quase dois séculos de política e de tronco social. O Manifesto Comunista de Karl Marx é de 1848 – ou seja, ainda não havia enfrentamento político com o socialismo e já os Conservadores andavam no terreno. O Partido Trabalhista (os socialistas britânicos) aparece somente em 1900 e só a pouco e pouco vão conquistar aos Liberais o lugar da alternância. Estes Liberais, hoje os LibDem, também vinham de 1678, por outras avenidas e cruzamentos: eram os Whigs, que rivalizavam com os Tories, ancestrais dos Conservadores. Não há nada disto na nossa política, nem no resto da Europa.

Isto não se inventa, constrói-se – e, ao fim de 100 anos no mínimo, podemos talvez começar a comparar. Os Conservadores já têm uma travessia que pode medir-se em 185 ou 341 anos, conforme o marco histórico que usarmos. As questões de identidade e de linha foram discutidas e definidas várias vezes ao longo desta rica, variada e longa história. E foram definidas para um corpo político que representa toda a direita britânica e não uma parte dela, enfrentando os desafios que surgiram – o último foi do UKIP, que, importa notar, sendo identitário, foi o grande vencedor de todas estas batalhas, na substância política. Não pode retirar-se desta história paralelos que inspirem validamente as opções a fazer em partidos que representam segmentos da direita e do centro – e alguns apenas pequena parte – e têm a escolher entre ser ou desaparecer, estagnar ou crescer.

Também é preciso baixar a euforia de claque, pois Boris Johnson tem muitos desafios pela frente. É cedo para sabermos como tudo vai acabar. Sim, agora é mais certo que o Brexit vai acontecer. Mas o que vai acontecer com o Brexit? Das más previsões que havia nenhuma se cumprirá? Será tudo rosas? E a Escócia? Vai haver, ou não, outro referendo sobre a independência? E a Irlanda do Norte? Junta-se à Irlanda? Há muitas questões difíceis. E o Partido Conservador, ao longo dos últimos anos, tem-se vindo a tornar um partido quase exclusivamente inglês na sua representação. Isso pode tornar muito limitada a sua capacidade de condução unida do país, num momento de dificuldades, divisões e fracturas.

Não desejo mal – apesar de ser contra o Brexit, por o considerar negativo para o Reino Unido, para Portugal e para a Europa. Desejo que as coisas corram bem aos britânicos. Sinceramente. Mas lembro apenas aos mais eufóricos entusiastas de Dezembro que Cameron passou de génio a looser em apenas um ano, com toda a gente a culpá-lo pelo Brexit, quando ele era contra e lutou contra ele. E Cameron tinha também ganho o referendo da Escócia. Na política, é frequentemente muito curta a passagem de besta a bestial e de bestial a besta. Johnson fez, agora, a primeira passagem. Nada garante que não faça a segunda.