Quando é que Fernando Santos começou a tratar os jornalistas por tu? Pensei nisto ao ouvir o seleccionador dirigir-se a um jornalista com modos de camarada, de quem costuma ir para os copos com o outro ou é visita lá de casa. Fernando não era assim. Desconfio que isto seja trabalho de algum pardo guru da comunicação, escondido atrás das cortinas do gabinete do presidente da federação, que percebeu a tempo que substituir a sisudez de Paulo Bento pelas feições pessimistas de Santos poderia ser fatal. Desde tempos imemoriais, o seleccionador nacional manteve aquele ar carrancudo de quem às vitórias rosna e às derrotas morde. Na Federação Portuguesa de Futebol alguém suspeitou que isto poderia exaurir a jazida de pensamento positivo e optimismo acéfalo que é a “Selecção de Todos Nós”.

Então, para minha surpresa, e calculo que para surpresa de todas as pessoas que já tinham visto Fernando Santos a enfiar o dedo pelo colarinho no banco, como se estivesse a ser sufocado por forças invisíveis, o seleccionador apareceu sorridente, jovial, com ditos espirituosos, numa interacção gaiata com os jornalistas. E a tratá-los por tu. Se Miguel Sousa Tavares aderisse hoje ao facebook e pusesse como foto de perfil uma fotografia dos pés com um javali morto ao fundo o meu espanto não seria maior (a parte do javali nunca me surpreenderia).

É opinião corrente que Fernando Santos é um homem bom, cordial e educado, ou seja, aquilo que no futebol costuma conduzir os treinadores ao comentarismo televisivo, esse limbo entre o desemprego e um clube dos Emirados. Todas essas qualidades humanas, de que eu não duvido, estiveram durante anos soterradas por aquele aspecto de revisor da CP, daqueles que na linha de Sintra inspeccionam com minúcia passes e cartões, excessivamente zelosos no cumprimento de um dever menor. Mas era esse semblante de quem traz sobre si uma eterna nuvem negra que o tornava amável. O pessimista crónico, mesmo que meramente fisionómico, cria multidões de optimistas à sua passagem. Toda a gente fica com vontade de lhe dar uma palmadinha nas costas e dizer: “isso não é nada, ó Fernando!” Não vou dizer que deixei de gostar de Fernando Santos desde que ele se converteu à religião universal da simpatia e da informalidade, mas senti essa passagem como uma grande perda para a família dos antipáticos, dos tímidos, dos tristes, dos revisores da CP, dos pessimistas militantes, dos macambúzios e dos misantropos em geral.

Já agora

O jantar começou bem. Em silêncio. Depois, a senhora, inebriada pela sangria de frutos vermelhos, expeliu um denso vómito cultural: a viagem a Viena e os seus incomparáveis tesouros – referiu-se aos austríacos, ou mais exactamente aos Habsburgos, como “aqueles gajos”; o modo astuto como contornou uma fila de turistas ignorantes e ficou a meio palmo de distância de um quadro de Klimt; o horror à monocromia de Roma, uma particularidade que entendeu como uma afronta pessoal, um insulto gratuito e soez à sua sensibilidade urbana; a proibição inflexível de fotografar a Capela Sistina; uma sandes de cavala devorada após um passeio pelo Bósforo numa rua de Istambul; um quadro de Bosch no Museu do Prado… Istambul, Madrid, foi então que me lembrei do jogo. Sem televisão no restaurante, espreitei o resultado no telemóvel: 3-0 para Espanha. Ora, bolas! Um jogo daqueles e eu ali, indefeso e sem fuga possível, a empanturrar-me de broa e cultura alheia.

Há dias, António Tadeia – cujos textos leio sempre com proveito – escreveu que Fernando Santos iria tentar o que nunca nenhum seleccionador tinha conseguido: conciliar Ronaldo e Quaresma na mesma equipa. O tom é que era curioso: como se o seleccionador se preparasse para escalar o Evereste apenas com uma garrafa de água do Luso e uma lata de atum; ou como se tivesse apenas doze horas para descobrir a cura para o cancro. Não sei se é possível juntar Quaresma e Ronaldo sem que a equipa perca “os equilíbrios defensivos”, esse bem que deve ser aguerridamente defendido por toda a comitiva nacional, mas sei o que aqueles dois rapazes fizeram há muitos anos, num jogo particular contra o Brasil, em Wembley.

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