Nos termos do Regulamento (CE) de 29 de Março de 2006, n.º 507, as vacinas anticovídeos em circulação decorrem de uma autorização condicional para comercialização, baseada em elementos provisórios, que o regulamento fixa em doze meses. O regime diferenciado previsto para a emissão deste tipo de autorização pode não ser um elemento discriminatório para que estas vacinas sejam rotuladas como experimentais, mas também não permite que sejam identificadas como vacinas testadas, com base na exaustividade do procedimento padrão que termina com uma autorização definitiva, seguido de cinco anos de farmacologia. Assim sendo, nem é preciso dizer que não há comparação entre os procedimentos destas vacinas e aquelas “à moda antiga”, que foram sempre procedidas de resultados de pesquisas, estudos e experimentos mais do que consolidados ao longo do tempo.

Esperava-se, por isso, que, na falta de evidências científicas irrefutáveis, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, assumisse uma postura segundo o princípio da máxima transparência, enquanto “bem comum universal”, conforme prometeu. Mas, não foi essa a sua escolha. Pelo contrário: fechou os contratos que assinou com as empresas farmacêuticas no “quarto escuro” da Rue Belliard, para os proteger do escrutínio público, gerando, desde então, uma espécie de dissonância cognitiva, em que a vacina se tornou um de acto de fé sobre o qual não é possível expressar dúvidas ou alimentar medos sem se tornar uma ameaça para a sociedade. Sociedade esta que se esgota em exigir que cada um faça um sacrifício pelo bem de todos, mas que não suporta os medos e incertezas de cada um, mesmo diante da escolha entre o risco da vacina e o da doença. Ter medo é um direito, combater o medo é um dever que a campanha de estigmatização não ajuda a cumprir, nem mecanismos discriminatórios, jurídica e cientificamente insustentáveis, como o Certificado Digital, que sanciona a falta de vacinação com uma série de limitações à liberdade de circulação.

Como já aqui referi, a ausência de obrigação de vacinação e Certificado Digital representam uma contradição de termos: se não há obrigação não pode haver sanção e se há sanção significa que há uma obrigação, disfarçada, introduzida sub-repticiamente com base na presunção de contágio dos não vacinados, negada, todavia, inclusive pelo guru Anthony Fauci, no passado mês de Julho: “os dados de mutação disponíveis mostram que o nível de infecção nas membranas mucosas de uma pessoa vacinada é igual ao de uma pessoa não vacinada”. Mas então porque continua a presidente da Comissão Europeia a incutir na mente dos cidadãos europeus a narrativa de que basta um pedaço de papel para se sentir seguro, vacinado, livre e feliz? Porque são as narrativas que sustentam a pressão vacinal “para o bem da saúde do cidadão”.

Desde o “glorioso” Dia V, o dia em que as campanhas massivas de vacinação começaram, vimos a narrativa oficial europeia mudar de forma constrangedora: a vacina imuniza até 95% e é para sempre. Não, ao contrário, imuniza até 70%, mas são precisas duas doses. Não, desculpem, imuniza pouco mais de 50%. Na verdade, apenas de 30%, pelo que uma terceira dose é necessária; e então a quarta e quinta. Na verdade, a vacina não imuniza, mas reduz os sintomas. Não reduz os sintomas, mas protege-nos de desenvolver doença grave. Ficamos doentes, mas não vamos parar aos cuidados intensivos. Acabamos nos cuidados intensivos, mas não morremos. Ok, podemos morrer, mas muito menos do que antes.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O mesmo aconteceu com a narrativa sobre a famosa “imunidade de grupo”, que começou por apontar o limiar de 65%-70% de vacinados para derrotar o vírus, inclusive sem restrições. Então fomos para 80%. Depois para 90%. E agora que chegamos a 97% e a curva epidemiológica se eleva até ao céu, deixamos de ouvir falar na imunidade de grupo. Um pouco como aquela cena em desenhos animados onde um personagem vê um oásis e quando está prestes a mergulhar toda a paisagem desaparece.

Então agora que a Comissão Europeia quer evitar a fragmentação na abordagem à terceira dose, a narrativa voltou a mudar, com as novas disposições relativas ao Certificado Digital. De facto, a partir de hoje, o prazo validade passa de doze para nove meses (270 dias), o que significa que quem completou o esquema vacinal, ou seja, a partir da data da segunda dose para Pfizer, Moderna e AstraZeneca e a partir da data da dose única para a vacina Johnson & Johnson, em Junho/Julho (a maior parte dos portugueses) e pretende viajar para a Europa, só o poderá fazer mediante uma dose de reforço, conforme anunciou o Comissário Didier Reynders: “além dos nove meses, o certificado não deve ser mais aceite a menos que um reforço tenha sido administrado.” Mas não só. Este período resulta de um parecer do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças que confirma que “a eficácia das vacinas diminui seis meses [eram doze, na verdade nove, na verdade seis, ou talvez três-quatro meses], após o esquema de vacinação completa”, razão pela qual foi concedido aos Estados-membros três meses para organizarem a administração do reforço. Uma indicação praticamente impossível de cumprir. Tomemos por exemplo Portugal. Com pouco mais de 4 milhões de pessoas vacinadas com a dose de reforço, o coordenador da task force, Penha Gonçalves, já veio dizer que “o processo de vacinação com dose de reforço só deverá ficar concluído daqui a cinco ou seis meses”. Não acabou: os certificados que indiquem a administração de doses de reforço não têm prazo de validade. Mas como? Então agora que o ECDC confirmou que a eficácia das vacinas não dura mais do que seis meses, ficamos a saber que os trivacinados podem circular indefinidamente sem representar qualquer risco para a disseminação de Covid? Mas há mais: o considerando 26 da resolução estipula que “certas categorias de viajantes não devem ser obrigadas a estar na posse de um Certificado Digital”, tais como trabalhadores dos transportes ou prestadores de serviços dos transportes, pessoas que atravessam as fronteiras diária ou frequentemente para trabalhar ou estudar, entre outros. Ou seja, uma pessoa que exerça uma dessas funções fica isenta do que é exigido aos comuns dos mortais? Mas a Covid não afecta a todos igualmente? E que sentido tem então fixar um limite de nove meses, como se fosse a barreira que protege contra o vírus? Quantos estudos publicados em revistas científicas, como a The Lancet, mostram de pessoas com duas, três e até quatro doses (Israel) testaram positivo ao fim de pouco mais de um mês? Porquê adoptar uma medida que não tem nada de científico? É claro que não há respostas para estas perguntas, porque quando as perguntas vão além da lógica para se tornarem ideologia, não há explicação.

Mas o que de facto faz, por fim, cair a hipocrisia da pressão vacinal “para o bem da saúde do cidadão” é a regra que estipula que o que é agora determinante, para efeitos de viagens transfronteiriças, é o status de vacinação, teste ou recuperação de Covid de um viajante e não mais a situação epidemiológica do país de origem. É uma abordagem que priva as pessoas de exercer direitos fundamentais, como o direito de circulação, até que demonstrem merecê-los. É uma abordagem que cria uma inversão do ónus da prova. Isto é, se eu quiser exercer o meu direito de circular livremente, tenho de provar que sou digna dele. Esta inversão do ónus da prova representa uma mudança de paradigma repleta de implicações: cabe-me a mim, agora, provar que sou saudável; e se por algum motivo não o puder fazer (por defeito técnico ou por incompetência do governo), fico de imediato impedida de viajar na UE.

Acresce que as novas regras conferem ao Certificado Digital uma condição que se pretende duradoura. A condição de não-patologia é agora algo que deve ser testado por cada sujeito de forma permanente, por tempo ilimitado. Refira-se que a situação de emergência (real ou presumida) foi de facto usada para introduzir este certificado, mas não para definir os seus limites. A sua introdução não foi, aliás, acompanhada de qualquer definição das condições em que seria removida. Pelo contrário, apesar das evidências científicas que provam a sua inutilidade, a UE (e governos) recusa-se sistematicamente a esclarecer em que condições o certificado deixaria de ser inútil.

Face ao exposto, devemos concluir que não importa o número de doses consideradas inescrutavelmente suficientes pelos nossos “cientistas” com S maiúsculo. O que de facto importa é que o Certificado permaneça em vigor sem limite de tempo, uma vez que permite transferir a responsabilidade dos governantes para os ombros dos cidadãos.