Em Portugal, neste momento, há um grupo de trabalho na Assembleia da Republica, a estudar quatro projetos de Lei, propostos por quatro partidos políticos (PS, BE PAN e IL), sobre a “morte medicamente assistida não punível”, comummente traduzida por “eutanásia” ou “morte antecipada”.

Todos os projetos, muito semelhantes entre si, preveem um processo, desde a efetivação do pedido até à realização da morte antecipada, assente no pressuposto de que a pessoa doente tem direito a ser respeitada na sua liberdade, dignidade e autodeterminação.

É uma matéria sensível e fundamental, e por isso continuam a debater-se nas esferas sociais e científicas os argumentos contra e a favor do próprio pedido de morte. Independentemente dessa argumentação, vale a pena percorrermos o fluxo do processo previsto nestes projetos de lei para compreender que, ao levar a teoria de Lei à prática da realidade do nosso país, todos eles são impraticáveis, e que dificilmente respeitarão a liberdade, a dignidade ou a autodeterminação da pessoa que se encontra num sofrimento intolerável.

O processo é desencadeado por um pedido, formalizado através do preenchimento de um formulário, e entregue, pela pessoa doente, ao médico por ela escolhido. Isto conduz-nos imediatamente a duas situações: a da decisão consciente para morrer, e da possibilidade de escolha do médico.

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Cruzei-me, no exercício da minha profissão, com pessoas doentes, em situação de doença grave e incurável e/ou lesão definitiva de gravidade extrema, em unidade de cuidados continuados. Como estes, há centenas distribuídos pelo nosso país, de idades diversas. Quem com eles se cruza vê, e sente, o sofrimento intolerável espelhado no olhar, nos gestos e porventura em todo o corpo: as saudades dos que lhes são queridos e que lhes doem no corpo, a dependência para fazer uma videochamada frequente, a solidão que lhes assola a alma e a existência, a impossibilidade de ver realizadas vontades tão íntimas como trocar uma fralda molhada por uma seca, talvez uma refeição mais condimentada (para os que podem saborear), a possibilidade de rever um animal de estimação, ou apenas a terra que os viu nascer. É verdade que cabe neste sofrimento o desejo profundo de que ele termine, e depressa. Mas cabe, sobretudo, o desejo de que algumas destas condições pudessem ser alteradas. Apesar dos cuidadores maravilhosos que estão por esse país fora, portadores da alegria e que transformam o intolerável numa experiencia de amor sem precedentes, é preciso mais, muito mais. E sem liberdade para transformar a minha realidade, sem apoio na avaliação das condições de vida passíveis de ser melhoradas, com impacto significativo na qualidade de vida e no sofrimento, não cabe uma decisão livre.

Nestes lugares, o único médico do universo do doente é aquele disponível na unidade, que pode ser mais ou menos apreciado. Por outro lado, de acordo com os dados mais recentes, pelo menos um terço dos portugueses não tem médico de família. Os portugueses não têm liberdade para escolher o médico que querem nem quando estão em pleno exercício da sua autonomia e capacidade. Não podemos, por isso, assumir, na larga maioria dos casos, para não dizer na totalidade, que a pessoa doente, dependente e fragilizada, possa eleger o médico orientador de forma livre, porque já está à partida condicionado.

Supondo que o médico orientador, efetivamente eleito pela pessoa doente, confirma que a pessoa doente reúne as condições clínicas para pedir para morrer antecipadamente – doença e/ou lesão – (caso contrário é cancelado o processo), o médico orientador escolhe um médico especialista, para confirmar que as condições clínicas daquela pessoa, legalmente, permitem pedir a morte antecipada. Se ambos concordarem que a pessoa doente reúne um destes critérios, o processo avança. Até aqui, este não inclui nenhum parecer ou avaliação de especialista sobre o estado de saúde mental da pessoa, das suas circunstâncias de vida, do que constitui sofrimento intolerável, das medidas necessárias para o aliviar e de como pode o sistema familiar desempenhar um papel nesse sentido.

No entanto, se algum destes médicos suspeitar da capacidade da pessoa doente para tomar uma decisão, que se quer consciente, livre e esclarecida, pode pedir um parecer de um médico psiquiatra, escolhido por eles. É verdade que a suspeita, clínica, pode e deve ser fundamentada por elementos objetiváveis. Mas o contrário também é verdade: não suspeitar, também pode ser justificado por fatores objetiváveis. Não podemos assumir que uma avaliação fundamental neste processo, assente numa suspeita, respeita a dignidade de uma pessoa, o valor único e inalienável da sua vida.

Somados dois ou três pareceres positivos, o processo é encaminhado para a Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida (CVA), ou seja, para o conjunto de pessoas que vão garantir e confirmar que estão reunidas as condições legais para conceder a um cidadão a morte antecipada assistida. É composta por dois juristas, um médico, um enfermeiro e um especialista em bioética, mas os profissionais de saúde não podem ser objetores de consciência. Assumindo um intenção de imparcialidade, presume-se que só os profissionais de saúde que estão disponíveis para concretizar o pedido de morte de uma pessoa estão aptos a atestar que esta cumpre os requisitos. Porém, em nome da imparcialidade, o processo fica condicionado a uma só parte, eliminando do caminho um obstáculo da possível discórdia, o que agiliza o processo.

Todos de acordo, o processo chega ao artigo 9º: mediante parecer favorável da CVA, o médico orientador, de acordo com a vontade do doente, combina o dia, hora, local e método a utilizar para prática da morte medicamente assistida.

É verdade que a pessoa doente é questionada ao longo de todas as fases. É verdade que é possível cancelar o pedido em qualquer momento. Mas também é verdade que este é um processo simples. Demasiado simples para quem quer acabar com o dom da Vida. Neste momento pode até ser simples e rápido, não estando previstos prazos mínimos para os diferentes processos (exceto o parecer da CVA).

Não podemos assumir que somos um país evoluído, ao compararmo-nos com os países que consideramos evoluídos pelo facto de despenalizarem a morte antecipada. Devemos querer evoluir relativamente a países que primam pela qualidade de resposta à Vida!

Atualmente, em Portugal, a qualidade da resposta e a capacidade de resposta para os doentes com doença grave e incurável ou com lesão definitiva de gravidade extrema, e seus cuidadores e famílias, é escassa, débil e em muitos lugares, absolutamente inexistente. Para quê a urgência em legislar sobre conceder a morte, antes de legislar para garantir a máxima qualidade de Vida?

Esta não é uma realidade para os doentes, para os idosos, para “os outros”. Esta é a realidade de cada um de nós. Diz respeito à profunda fragilidade da vida de cada um, da incerteza do que nos espera. E se for a doença, o sofrimento e a dependência? Que respostas nos esperam neste país, que nos façam querer continuar vivos, assumindo o valor inestimável do contributo pessoal de cada um, ainda que em total debilidade? Primemos pela igualdade de oportunidades sendo doente ou saudável, autónomo ou dependente, forte ou débil. Quando essas estiverem asseguradas, pensemos no próximo capítulo. Até lá temos muito que estudar e que fazer, não sobre a morte, mas sobre a Vida.