Em Junho, António Costa afirmou que “com as previsões para a inflação e para o crescimento económico, vamos ter um aumento histórico das pensões de reforma com a aplicação da fórmula que existe desde 2007.” Acrescentou, inclusive, que “não há a mínima dúvida de que vamos cumprir a fórmula, as leis existem para serem cumpridas.” Foi nessa altura que António Costa também apontou para uma subida de 20% do salário médio em Portugal. Mais tarde, dois meses e meio mais tarde, mais precisamente a 5 de Setembro, o mesmo António Costa primeiro-ministro de Portugal anunciou que, em 2023, e apesar de a inflação se situar na ordem dos 9%, as pensões iriam aumentar entre 3,53% e 4,43%. Ou seja, abaixo do valor da inflação; ou seja, apesar de os pensionistas receberem mais, vão ter menos rendimento porque o dinheiro que vão receber valerá menos que o que valia no ano anterior. Nesse mesmo dia 5 de Setembro, o primeiro-ministro afirmou que “transformar a inflação deste ano como um facto permanente na Segurança Social poria em causa a sustentabilidade” da mesma. Em Junho a inflação foi de 8,7%; em Agosto, de 8,9%. O que mudou para que António Costa usasse a inflação para mudar o discurso? Nada.

É nessa medida que em Junho faltou à verdade. Mas não vou tratar aqui da necessidade de enquadrar o valor das pensões com o país. O PS negou essa realidade e fugiu dela durante anos. O que me interessa é a utilização da mentira como forma válida de fazer política numa democracia.

A política é um jogo de percepções e de aparências que Costa joga a seu favor. Aparentemente, em Junho, o primeiro-ministro não estava a par do que muitos sabiam nessa altura. Não estava a par do que até a Sedes (associação onde pontuam vários socialistas) referiu no livro que publicou em meados de Agosto e na qual apresentou a sua visão estratégica para o país. Foi nessa publicação que a Sedes alertou para a degradação do valor das pensões, caso não seja feita uma reforma séria do sistema. Outro exemplo: quando António Costa afirmou que o aumento do salário médio tem de subir 20% até 2026, a percepção com que ficámos foi que o primeiro-ministro se referia a todos os portugueses, mas não foi bem isso o que disse. Na verdade, o que mencionou foram os salários e os pensionistas não recebem salários, recebem pensões; logo os pensionistas nunca estariam abrangidos nessa vontade de aumentar em 20% os rendimentos dos portugueses até 2026.

Santo Agostinho debruçou-se sobre a mentira e distinguiu-a do erro. Para ele, mais importante que a verdade ou a falsidade, o que faz um mentiroso é a intenção, a simulação deliberada. Santo Agostinho também distinguiu a mentira através das suas consequências. Classificou vários tipos de mentiras com diferentes graduações que variavam de acordo com a sua gravidade. Há mentiras que favorecem alguém mas não prejudicam ninguém, outras prejudicam alguém e não favorecem ninguém, há as que são proferidas para agradar outrem, outras que são bem-intencionadas e derivam da boa-educação, algumas até visam um bem maior e por aí em diante. A mentira não é algo simples, da mesma maneira que nós não somos simples nem as situações em que nos envolvemos ao longo da vida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

As distinções que Santo Agostinho faz dos vários tipos de mentira são relevantes quando falamos de António Costa. Em Junho, António Costa até podia saber que não dizia a verdade, mas que tinha em vista a um bem maior, a sustentabilidade da Segurança Social. Foi esse o entendimento que Luís Aguiar-Conraria apresentou no programa ‘Fora do Baralho‘ (escutar a partir do minuto 29:30) da rádio Observador com o seguinte raciocínio: é urgente alterar o sistema das pensões; essa alteração é impopular; muitos eleitores são pensionistas e votam contra quem diga que vai reformar o sistema, logo a única forma de o fazer é enganando os pensionistas. Como? Não lhes dizendo a verdade; mentindo com vista um bem maior que é a sustentabilidade da Segurança Social. Ou seja, a mentira de Costa é aceitável, foi engenhosa ou criativa e é para o nosso bem. Dizer a verdade é retórica política e mentir (ou não dizer a verdade) aos eleitores tornou-se aceitável.

A questão é interessante até porque a política numa democracia pressupõe retórica. Supõe comunicar o que se pretende com vista a convencer. É nesse sentido que os cidadãos são chamados a votar. Não esqueçamos que o voto é responsável se for com com conhecimento de causa. Mas o tema é mais grave ainda. O problema do bem maior que justifica a mentira é saber que bem será esse. No caso concreto das pensões, o bem maior é reformar o sistema de modo a torná-lo sustentável ou será que a confiança dos cidadãos no regime democrático é mais importante? Dito de outra forma: até que ponto é positivo assumirmos que, em democracia, só se fazem reformas se enganarmos as pessoas? Se lhes mentirmos? Até que ponto vale a pena apresentarmos propostas sérias e verdadeiras se com isso perdemos para o adversário que mente com boas novas?

Ou encarado numa outra pespectiva: não será a mentira uma forma de populismo? E se a mentira é o caminho para que se façam reformas, será que o populismo é o melhor meio para as levar por diante? Pior ainda: se a democracia implica convencer os eleitores, e isso pressupõe que se fale verdade, será a necessidade da mentira para que se façam reformas o reconhecimento que a democracia não é a melhor forma de governo?

Para Santo Agostinho a pior mentira era a de cariz religioso. Essa mentira era grave e inaceitável mesmo se proferida com o intuito de converter alguém. Para Santo Agostinho a mensagem de Deus era demasiado pura para que fosse maculada com a mentira, além de que não seria preciso mentir  com vista a convencer quem quer que fosse da sua veracidade. No mundo actual das democracias liberais a religião não tem o papel que assumiu nos século IV e V (apesar de a liberdade individual ter fortes raízes cristãs). É a própria concepção que temos de democracia liberal, da liberdade da pessoa perante o poder, de defesa dos fracos perante os poderosos, da escolha informada e responsável que cada cidadão faz através do voto, que se tornou sagrada e cuja corrupção é inaceitável. Nesse sentido, e na linha de Santo Agostinho, mentir com vista a reformar um sistema essencial ao bom funcionamento da democracia liberal é uma mentira grave. Das mais graves, pois coloca em causa os próprios alicerces que sustentam a democracia. Se a democracia mente que legitimidade tem para criticar quem o faz? Serão as boa intenções um fundamento? E quem demarca os termos da subjectividade inerente às intenções de cada um, de cada campo político, de cada governo ou de cada partido da oposição? Onde fica a segurança que segura a justiça que é a causa da democracia?

A resposta a cada uma destas perguntas leva-me a crer que as mentiras engenhosas e criativas de António Costa se podem revelar uma ameaça grave à estabilidade da democracia. Ao tentar legitimar a mentira, António Costa abre a porta a que o seu comportamento se repita com outros intervenientes e assuma proporções que vamos lamentar no futuro se não lhe pusermos cobro agora.