Todos os anos, no início do ano letivo, os media dispensam alguma da sua atenção para a educação, sobretudo para noticiar as falhas na colocação de professores. Este ano não foi exceção e o próximo infelizmente também não será. Para além disso, tirando quando são publicados os resultados dos relatórios internacionais ou quando existe alguma notícia particularmente negativa ou positiva, pouco se fala sobre educação. A não ser quando o ministro faz uma afirmação polémica, como aconteceu este ano, quando Tiago Brandão Rodrigues declarou que um aluno da escola pública custou em média 6200 euros em 2020, ou seja, “um aumento colossal” de 30% face a 2015.

Essa declaração levou diversos comentadores a destacar que o valor do custo médio de um aluno da escola pública supera largamente o valor das melhores escolas privadas, procurando justificar o cheque ensino sem aludir às nuances singulares do ensino público. Esse debate foi paradigmático da forma como a nossa sociedade mediática se deixa enredar no facilitismo de abordar um tema tão importante de uma forma desorganizada, manietada por interesses partidários e matrizes ideológicas, sem identificar os principais desafios do nosso sistema educativo e sem encontrar as soluções para os ultrapassar.

Sendo consensual que Portugal conseguiu um progresso notável na redução da taxa de analfabetismo, no aumento do número de anos de escolaridade obrigatória, na redução do abandono escolar, e nas avaliações internacionais, não podemos adormecer à sombra desses louros. Não será exagero reconhecer que o sistema educativo português continua a falhar em dimensões bastante significativas. A insatisfação dos alunos, pais e profissionais docentes e não docentes, deixa em evidência essas carências. De uma forma geral, é um sistema pouco inclusivo e insuficientemente adaptado ao mundo dos nossos dias. Um mundo que atravessa rápidas e profundas transformações científicas, tecnológicas, ambientais e demográficas, que nos exigem diversas mudanças.

Em primeiro lugar, precisamos de reforçar a universalidade, a gratuitidade e a qualidade da educação pré-escolar, entre os 3 e os 5 anos, e da educação na primeira infância, entre os 0 e os 3 anos. Esta última com uma taxa de cobertura de apenas 48%.  Este aspeto é especialmente importante se considerarmos que uma educação de qualidade na infância contribui para melhores desempenhos ao longo da vida. Neste âmbito, seria positivo passar a tutela das creches e dos jardins de infância do ministério da segurança social para o da educação, tal como acontece na maioria dos países da OCDE, contribuindo para uma melhor articulação entre a educação na primeira infância e o pré-escolar, nomeadamente no capítulo curricular, mas também nos aspetos sociais.

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Em segundo lugar, é urgente renovar e requalificar o corpo docente, um dos mais envelhecidos da OCDE, com apenas 1,1% dos professores com menos de 35 anos, e com 53% com mais de 50 anos. O que significa que 40% dos professores deverão aposentar-se até 2030. Isto enquanto o número de alunos em mestrados com habilitação para a docência caiu 70% desde o início do século. Por essa razão, é urgente reconfigurar os critérios de acesso, seleção, colocação, avaliação e remuneração dos professores. Tal como aconteceu noutros países, devemos abrir o recrutamento a profissionais com diferentes qualificações enquanto aumentamos os vencimentos dos professores em início de carreira. Começa a ser insustentável manter um modelo único de carreira profissional e de colocação de professores, nomeadamente para certas disciplinas ou localizações que pela sua natureza exigem outro tipo de critérios de seleção e remuneração, como sejam a informática e o interior.

Tal como acontece na maioria dos países da Europa, o método de colocação de professores deve ser mais aberto, transferindo para as escolas parte das responsabilidades do recrutamento dos professores, através de um processo regulamentado e monitorizado a nível central.  Está na hora de adaptar o algoritmo central, que ignora a importância da adequação do processo de recrutamento às características geográficas, socioeconómicas e curriculares de cada escola, e deixar as escolas participarem na escolha dos seus professores.

Quanto à formação dos professores, é incompreensível que Portugal continue a ser um dos únicos países da Europa sem planeamento prospetivo. Urge alterar as linhas orientadoras para a formação dos professores, para que as instituições de ensino superior elevem os seus padrões de exigência e ajustem o currículo aos requisitos da profissão no contexto atual e futuro. Só assim poderemos ajustar a oferta educativa às reais necessidades do sistema, enquanto procuramos robustecer as competências dos docentes. Mas essa formação não se poderá esgotar no ensino superior. Deve continuar ao longo da vida, por exemplo através de ferramentas de e-learning devidamente selecionadas pelo Ministério da Educação.

Em terceiro lugar, precisamos de aprofundar os níveis de autonomia e de liberdade do nosso sistema educativo. Portugal não pode continuar a ser um dos países da Europa com uma das mais baixas taxas de decisões tomadas a nível local. Com outra governança e outros mecanismos de prestação de contas, as escolas podem e devem ter uma maior autonomia na gestão dos seus recursos humanos e materiais. O aprofundamento da autonomia e da liberdade de escolha pode contribuir para a coesão social e territorial, ou seja, para uma sociedade em que o acesso a uma educação de qualidade não dependa tanto dos recursos das famílias ou da localização das escolas. Mas para isso precisamos de soluções que assegurem a qualidade da educação em territórios de baixa densidade populacional, por vezes menos atrativos para os professores. Assim como precisamos de medidas de combate à segregação socioeconómica, porque com o atual sistema de matriculação de alunos, a composição estudantil reflete a segregação residencial das famílias. Para combater essa segregação, podemos reforçar a participação das escolas privadas na rede de oferta pública, permitindo que as crianças de famílias carenciadas frequentem as escolas privadas através de financiamento público. Podemos também permitir que os alunos da Ação Social possam escolher a sua escola independentemente do local da sua residência, tendo o transporte assegurado pelas autarquias. Só assim Portugal pode deixar de ser um país onde a escolha da escola é uma manifestação do poder económico das famílias.  Só assim a educação pode ser uma base para a igualdade de oportunidades. Só assim o estatuto socioeconómico poderá ser cada vez menos preditor do sucesso escolar dos alunos e da sua emancipação cívica.

Mas não é apenas nas escolas que temos de aprofundar a liberdade e a autonomia. Precisamos de o fazer no ensino superior, através da eliminação das barreiras burocráticas que perturbam a gestão eficaz dos recursos humanos e materiais. Por outras palavras, é necessário permitir uma maior agilidade na contratação de professores e na admissão de alunos, para possibilitar a atração de talento. Neste âmbito, seria relevante reforçar os mecanismos de combate à endogamia académica. De acordo com o relatório da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência do ano letivo de 2015-2016, cerca de 70% dos docentes das universidades públicas portuguesas doutoraram-se na mesma instituição onde lecionam. Tal como disse Pedro Santa-Clara (professor na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa) a consequência da endogamia é “o facto de as pessoas não terem alternativas e terem crescido sempre no mesmo sistema”, tornando-o “impermeável à inovação e a novas ideias”.

Diversos estudos indicam que os fatores críticos para o sucesso das universidades são a sua dimensão, os seus fundos, a flexibilidade e autonomia da gestão, a interligação com a sociedade e a capacidade de captar professores e alunos talentosos. Para além desses fatores intrínsecos, a concorrência entre universidades é apontada como um dos aspetos mais relevantes para a liderança dos EUA neste campeonato, a par da excelente articulação entre a inovação universitária e as empresas.

Em quarto lugar, temos de aceitar que o modelo de escola uniforme (one-size-fits-all) está ultrapassado. Tal como disse Eric Hoffer “em tempos de mudança os criativos herdam a terra enquanto os instruídos deparam-se perfeitamente equipados para lidar com um mundo que já não existe”. Por isso, as competências para o século XXI, que incluem, entre outras, o pensamento crítico, a resolução de problemas, a colaboração ou a literacia digital, exigem abordagens pedagógicas diferentes, principalmente em anos e níveis de escolaridade mais avançados. A imagem tradicional da sala de aula onde o professor expõe a matéria e os alunos apenas ouvem e tiram notas está cada vez mais desajustada. As novas competências exigem aprendizagens mais dinâmicas e participadas, onde a discussão e a confrontação de ideias ocupam um lugar central, por oposição à tradicional memorização de conteúdos. A intensificação do caráter nómada e tecnológico dos estilos de vida, cuja proliferação a covid-19 acelerou, não pode deixar de ser acompanhada por uma reconsideração daquilo que deve ser o ambiente escolar.

O contributo do ensino profissionalizante nesta tarefa é inegável. A especialização de Academias de ensino profissional, em vez da utilização das escolas secundárias onde a tradição é liceal, surge como uma alteração fundamental, para que a prática deste tipo de ensino possa ser ministrada por professores com vocação própria, suportados por infraestruturas do futuro, adequadas às atuais necessidades de inovação pedagógica. Como complemento, seria também importante recuperar os cursos de ensino dual, não como mecanismo de recuperação para alunos com dificuldades no percurso educativo, mas como oferta inspirada nas mais elogiadas práticas de outros sistemas de educação europeus. Esta oferta formativa será tanto melhor quanto maior for o envolvimento dos parceiros sociais e da comunidade local, que são quem melhor conhece a realidade das atividades económicas e as exigências próprias do mercado de trabalho.

Um quinto ponto fundamental é a aprendizagem ao longo da vida, sobretudo se considerarmos que 48% dos portugueses com idades entre os 25 e os 64 anos não completaram o ensino secundário, quando a média da União Europeia é de 21,6%, e que, apesar do grande défice de qualificações dos adultos, são poucos os que participam na aprendizagem ao longo da vida (apenas 10%). Assim, precisamos de promover uma articulação entre as políticas de financiamento público e as necessidades das empresas, evitando certificações de papel e promovendo formações sólidas e transformadoras, nomeadamente para os empregadores, 49% dos quais não completaram o ensino secundário, e apenas 1/3 têm formação universitária.

Concluindo, o capital humano é o principal ativo de qualquer nação. Por isso, os decisores de políticas públicas de educação têm uma enorme responsabilidade. Prescrevem as ciências que o país precisa. Determinam o que cada aluno deve estudar, até que ponto e com que carga horária. Fazendo uso desse poder, o objetivo fundamental será sempre assegurar a formação completa do ser humano, preparando-o para o mercado de trabalho do futuro. Mas é ambígua a escolha das artes e das ciências que são mais nobres e necessárias. Será cada vez mais difícil preparar o ser humano para o amanhã, porque o amanhã é cada vez mais imprevisível. Daí a importância das bases de conhecimento. Das letras e da matemática, da física e da química, da história e da geografia. Mas também da educação física, dos pressupostos da nossa saúde e do estudo do meio ambiente. E cada vez mais da informática. E nas bases, não podemos deixar de estimular o empreendedorismo, a cooperação e a comunicação, reforçando as competências de raciocinar e criar, em detrimento das de memorizar e reproduzir. Assim como não podemos esquecer a formação sobre a sociedade em que vivemos, incluindo as suas estruturas de poder e os seus valores fundamentais. A inclusão, a coesão, o mérito, a cooperação, o rigor, o espírito cívico, a responsabilidade, a ética, o respeito pelo próximo, a sustentabilidade, a solidariedade, a liberdade, a criatividade, a curiosidade e a inovação. Foram valores como estes que guiaram a SEDES numa reflexão profunda sobre a educação, culminando em diversas propostas, algumas das quais aqui apresentadas, fruto de um debate sem partidarismos, mas repleto de um espírito reformista, alimentado por uma vontade genuína de transformar Portugal num país cada vez melhor para os nossos filhos e netos.

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.