A Empregada foi a primeira a reparar nele. Estava a tirar a loiça da máquina, quando pegou num garfo que nunca tinha visto. Não era um garfo com os outros, era esquisito. Mais escuro, desengonçado, parecia velho. Tinha umas amolgadelas no cabo e uma das pontas retorcida. A Empregada já trabalhava lá em casa há tempo suficiente para saber que não devia questionar as novidades que lhe apareciam na cozinha. Um dia, no início, fizera uma piada com o espiralizador que só foi usado uma vez, antes de ser encaixotado e arrumado na despensa, e a Patroa fulminara-a com um olhar diabólico – que podia ser de ódio, mas, em bom rigor, também podia dever-se ao défice vitamínico da dieta das cores que a Patroa andava a seguir. As dietas (vegan, do paleolítico, do jejum intermitente, das comidas começadas por F) eram outras parvoíces de cozinha que, juntamente com a máquina de sumos, perdão, o extractor de sumos, o detergente biológico orgânico, o leite de soja light, as tábuas de madeira feitas à mão que não podiam ser lavadas, e tantas outras modas, a Empregada aprendera a ignorar. O garfo bizarro devia ser só mais uma. Encolheu os ombros, arrumou-o com os outros garfos na gaveta dos talheres e não pensou mais nisso. Essa decisão irrefletida mudou a vida daquele garfo. Mal se fechou a gaveta, começou o pesadelo.
– Quem és tu? – perguntaram os outros garfos, incomodados com o estranho que, claramente, não era um deles. Tanto, que, com aquela anatomia, não encaixava na conchinha em que os garfos se arrumavam no compartimento.
– Não sei – respondeu o garfo, que não sabia mesmo. Não sabia quem era, nem de onde vinha, nem onde estava, nem como é que lá tinha ido parar. O que, para a coerência interna da narrativa, não faz sentido, mas dá jeito à história. Só se estivesse com amnésia. É isso! Tratava-se de amnésia. O garfo nunca tinha ido à máquina, só era lavado à mão, de maneira que aquelas 2h15 minutos com água a 70° tinham-no traumatizado e agora não se lembrava de nada.
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