A negociação de um Orçamento deveria representar um momento de salutar discussão na democracia representativa. Um espaço para a partilha de ideias e busca de soluções envolvendo o Governo e a oposição. O primeiro, enquanto proponente legítimo do modelo. A segunda, na qualidade de elemento igualmente interessado na correta gestão da res publica. Uma discussão sempre com o interesse nacional como pano de fundo.

Porém, a prática encarrega-se de mostrar que o Governo apela ao diálogo desde que o mesmo não se traduza em mais do que uns simples toques de maquilhagem, antecipadamente deixados na gaveta para dela serem retirados no momento oportuno como se de um presente se tratasse. Uma estratégia pensada para calar a oposição, oferecendo-lhe parte reduzida daquilo que constitui as suas bandeiras, mas sem desvirtuar ou tornar demasiado onerosa a proposta inicial. Quanto à oposição, o comportamento decorre sobretudo de interesses próprios e, como tal, aproveita a circunstância para denunciar que não se revê na proposta governamental, mesmo quando parte dessa oposição acaba por viabilizar o Orçamento.

Em Portugal, o primeiro Governo de António Costa soube aproveitar a conjuntura externa favorável para acomodar algumas das reivindicações dos parceiros que empurravam a geringonça. Os cofres públicos estavam suficientemente abastecidos por conta da decisão do governo de Passos Coelho, que tinha ousado ir além das exigências da troika de forma a criar uma almofada de segurança. Uma espécie de mealheiro ou conta-poupança, que viria a constituir um tesouro para António Costa e Mário Centeno, ao permitir satisfazer um leque de reivindicações da esquerda e extrema-esquerda populistas.

Porém, como o vento da fortuna se recusa a soprar sempre de feição, o segundo Governo de António Costa, novamente de maioria relativa, deixou de ser bafejado pela sorte. A pandemia apenas se encarregou de agudizar, ainda que desalmadamente, os sinais que vinham desde a tomada de posse. A impossibilidade de reconstruir a geringonça exigiu um constante ziguezaguear governamental de forma a ir colhendo, caso a caso, os apoios necessários para a sobrevivência do Governo. Daí as sucessivas concessões ao PCP e ao seu braço sindical. A comemoração do 1.º de Maio na Alameda da Fonte Luminosa e a festa do Avante inseriram-se nesse foguetório de contrapartidas. Num caso e no outro, António Costa não se pode refugiar na interpretação da Constituição, ao contrário do que fez relativamente à realização do próximo Congresso do PCP em pleno estado de emergência.

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Traçando uma analogia com a situação pandémica que o país está a sofrer, não parece abusivo afirmar que o Governo de António Costa, respaldado pelo conforto vindo de Belém, começou por desvalorizar os sintomas da maleita que o atormentava e demorou a aceitar deslocar-se aos serviços de saúde. Talvez por saber que os tempos e as listas de espera são bem mais longos do que a mensagem oficial faz prever. Quando finalmente se consciencializou que não podia adiar mais a decisão e se pôs a caminho, viu que só existia um elemento disponível para o atender. Alguém que, apesar de se afirmar como paladino da defesa da saúde pública, tem o hábito de cobrar caro pelos seus serviços.

Não são precisos dotes premonitórios para adivinhar que o PCP se vai recusar a dar alta ao Governo. Pelo contrário, malgrado a falta de camas, fará questão de o manter internado. Por muito que o Governo reclame que tem uma presidência da União Europeia agendada. Depois, quando as eleições autárquicas se aproximarem, é altamente provável que o Governo acabe por perceber que as vagas nos cuidados intensivos estão pela hora da morte.

Voltando aos ventos da fortuna, será caso para lembrar que o vento nunca sopra a favor de quem perdeu o Norte.