1 O trabalho dos médicos não é fácil; nunca foi. Tal como o dos enfermeiros. É complexo, delicado e de extrema responsabilidade. Exige uma dedicação muito acima ao que é requerido em outras profissões. Bancos de 12 e 24 horas não é para qualquer um e torna-se mais difícil à medida que se envelhece. Trabalhar para o Serviço Nacional de Saúde não é fácil; nunca foi, mas ficou pior: este tornou-se num sistema centralizado e inflexível, cego às necessidades dos seus profissionais. Ainda por cima insensibilizou-se numa época em que há mais alternativas e o espírito de sacrifício pelo mero espírito do sacrifício se tornou desnecessário.

Marta Temido tentou em cima da hora soluções pontuais para problemas que têm anos e que se agravaram nos últimos seis. A reversão das parcerias público-privadas na gestão privada dos hospitais do Estado foi apenas uma das muitas decisões que afectaram um equilíbrio já de si periclitante. A ministra da saúde tenta agora oferecer medidas pontuais feitas em cima do joelho porque uma solução global e mais abrangente está numa política em que a própria não acredita. Em que este governo ideologicamente não se revê. Perante a saída de médicos do SNS, o BE veio sugerir a imposição de exclusividade ao SNS. Claro que a contrapartida do BE são melhores ordenados. Sucede que a crise do SNS não se resolve com dinheiro, não está nos ordenados; reside na falta de condições de trabalho (uma visita ao hospital de São José em Lisboa é esclarecedora deste ponto), na inflexibilidade, desumanização do sistema que vê os médicos e os enfermeiros, não como o que são, mas como números, técnicos que cumprem objectivos. É curioso que a esquerda, geralmente  tão crítica relativamente ao dinheiro, veja neste a única solução para os problemas no sector público.

Fala-se muito de reformas que por alguma razão não se fazem. E sabemos porquê. Sabemos que, por motivos ideológicos, o governo não acredita nelas; sabemos que são difíceis e que são difíceis porque são complexas; precisam que o olhar se detenha nos detalhes. O SNS não volta ao que era só porque se despejam milhões de euros para cima dos problemas. São necessárias alterações na estrutura e isso pressupõe conversar de espírito aberto com os mais variados técnicos do sector, desde médicos e enfermeiros a gestores hospitalares, passando pelas farmacêuticas e pelas seguradoras. Exige diálogo e compromisso. Pressupõe verdadeira política, não a conversa fiada de quem aparenta que faz o que pode para que tudo fique na mesma pois não acredita na mudança.

2 Com juros baixos, governar foi fácil. A dívida pública acumulava-se, mas o que pagávamos pelo dinheiro que nos emprestavam era menos que o recebido. Houve quem sugerisse que estávamos perante as condições ideais para encetar reformas no Estado e reduzir a sua dívida (a nominal e não a relacionada com o PIB). No entanto, e à semelhança do que fez com Guterres, o PS decidiu que não. Concluiu que era melhor fazer de conta que tudo ia bem, que tudo ia correr bem. Para quê reformar, para quê reduzir a despesa pública quando a vida é fácil e as eleições estão garantidas? Na verdade, para quê? Qualquer político esperto e perspicaz, como António Costa, veria que era eleitoralmente catastrófico avançar com reformas. Um bom governante pensaria diferente, mas o nosso primeiro-ministro não é um bom governante. É um político esperto e perspicaz que há 5 meses ganhou as eleições com maioria absoluta. Tal como Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa é um político que conhece bem Portugal.

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Entretanto, o fim de uma pandemia originou um consumo nunca visto que, com uma guerra na Europa, se juntou à política de compra da dívida pública do BCE. Em Portugal, a situação pode agravar-se com um PRR centrado no investimento público e na vontade política de gastar milhões de euros em empresas públicas como a TAP. No espaço de meses, as principais condições para o aumento de preços reuniram-se para originar uma tempestade perfeita. O resultado foi o ressurgimento da inflação, o monstro que se julgava morto para sempre. Por enquanto, o BCE resiste a subir as taxas de juro. Christine Lagarde está ciente do risco dos juros altos nas economias endividadas, mas também sabe que não tem muita margem de manobra. E de repente tomamos consciência que a crise do financiamento de há 10 anos esteve simplesmente congelada; que o seu fim foi uma mera ilusão; que fizemos de conta que o problema se tinha resolvido. Infelizmente, com os juros altos, os temas tão em voga em 2011 estão de regresso. O financiamento do Estado volta a estar em cima da mesa. As fissuras no Estado social abrem-se novamente.

Quando foi eleito presidente em 2016, Marcelo Rebelo de Sousa disse que esse seria o ano da descrispação. O país podia voltar a ser feliz. Infelizmente, os problemas não desaparecem porque os ignoramos. Pelo contrário, reaparecem com mais força quando assim procedemos. Desde 2016 que Marcelo e Costa nos dizem que está tudo bem, que nos pedem para que não levantemos ondas. Desvalorizar qualquer sinal que contrarie a narrativa da felicidade tornou-se uma profissão de fé. Portugal tem sol, é procurado por turistas e tem uma boa selecção de futebol. Para quê fazer ondas? Para quê complicar ainda mais? Porque não fazer de conta? É mais fácil; foi mais fácil, mas será mais difícil daqui em diante.

António Salazar era um político que conhecia bem Portugal. Bem ou mal fez de conta que o mundo não mudara depois de 1945. É lamentável que tenhamos caído na mesma armadilha do fingimento.