Nunca, em tempos da minha vida, vi uma trapalhada tão portuguesa como a destes últimos dias em torno do futebol e das festas dos Santos Populares. No meio da conversa fiada sobre a “transição digital” e a “transição climática” e a patranha feia da pomposa e mendaz “Carta portuguesa de direitos humanos na era digital” (em que Rui Rio, sempre atento às questões da liberdade, vê enfim a possibilidade de acabar com os insultos na internet – já era tempo!), a gente que nos governa ou almeja governar decidiu mostrar definitivamente a vacuidade do seu espírito e a incompetência da sua acção. A regressão é total. Esqueçam os tratados de teoria política. Se vivem em Portugal, vendam-nos e substituam-nos por manuais de psiquiatria.

É difícil começar por algum lado, mas comecemos pelos festejos da vitória do Sporting no campeonato. Como seria de esperar, depois de uma abstinência de 19 anos, os adeptos do Sporting decidiram festejar efusivamente a vitória com a jovialidade do célebre avozinho da anedota de liceu que grita “Porque é hoje!”. Nada mais previsível, nem mais natural. O público mostrou-se indignado, por causa da pandemia, e os poderes resolveram passar as culpas uns aos outros. O suavíssimo Medina, da Câmara de Lisboa, não tinha culpa, nem sequer tinha recebido um mail que a polícia lhe tinha enviado. Cabrita, o sempre ilibado, estava a jantar com um colega esloveno e não tinha nada a ver com o assunto. A polícia, coitada, lá esboçou uma narrativa, como agora se diz, em que também se inocentava. Porque é que a coisa, que podia ter sido um bocadinho melhor organizada, não o foi, ninguém explicou. Ninguém sabia. Ninguém sabe. Ninguém nunca vai saber. Mas, dizem os sábios governamentais, é com a experiência que se aprende.

Depois, houve a final da Champions, no Porto, entre o Chelsea e o Manchester City. O presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, logo avisou que não se repetiriam no burgo as indignidades lisboetas. Mas, apesar de as coisas se terem aparentemente passado bem no Estádio do Dragão (e o Chelsea mereceu ganhar), multidões de Ingleses decidiram divertir-se recorrendo ao artifício de se embebedarem com doses industriais de cerveja, com uma pequena escaramuça entre adeptos rivais aqui e ali, o que permitiu aos bares da Ribeira ganharem num dia ou dois mais do que tinham ganho nos últimos três meses juntos. Também aqui, nada mais previsível, nem mais natural. E, também aqui, os poderes começaram a passar a culpa uns aos outros. Rui Moreira afirmou que, no que lhe cabia, havia feito tudo o que podia. A polícia contou que tinha recebido do Ministério da Administração Interna ordens para agir com brandura. E o ministro Cabrita, que caiu numa panela de ilibação quando era pequenino, disse que a notícia dessa ordem era um conjunto de “insidiosas mentiras”. Rio aproveitou, claro está, para atacar Moreira e Moreira aproveitou, obviamente, para atacar Rio. À luta entre Lisboa e Porto, acrescentou-se também, num raro momento de união nacional, a velhíssima luta contra “os Ingleses”, que só contam por cá com o apoio dos comerciantes da Ribeira. Felizmente, há quem ache que a coisa correu bem. Mais precisamente, António Costa admitiu que “não correu tudo bem”, não correu tudo “na perfeição”, mas o que não correu bem, o que não correu na perfeição foi por causa de uns folhetos pouco claros que foram distribuídos aos adeptos ingleses. Já para a Dra. Graça Freitas, da DGS, que se esforçou, com esplêndido sucesso – nem uma referência aos tais folhetos! -, para não dizer, como de costume, o mesmo que diz António Costa, “há sempre falhas, mas correu quase tudo bem”. De passagem, António Costa notou (e Graça Freitas sem dúvida pensou) que é com os erros que se aprende.

A minha simpatia, nestas duas histórias, vai para os adeptos. Não que me passasse pela cabeça juntar-me a eles, mas foram a gente mais inocente no meio disto tudo. Os poderes públicos ofereceram terreno livre e eles comportaram-se como infalivelmente tinham de se comportar. A hipocrisia ambiente quer excitação e recato de mãos dadas. Infelizmente, para falar como a Dra. Graça, não há “evidência científica” que dê “robustez” a esse desejo. A minha simpatia vai, como disse, para os adeptos e também para todos aqueles que ficam perplexos com a facilidade com que por cá se toleram excepções, se elas se apresentam como politicamente vantajosas, ao mesmo tempo que, quando o não são, são severamente perseguidas.  E as palavras mais acertadas que li vieram de alguém do futebol, mais exactamente de Jorge Nuno Pinto da Costa. Disse ele, referindo-se a uma conversa tida com o ministro da Educação Tiago Brandão Rodrigues, superior hierárquico do inenarrável secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Rebelo: “Perguntei ao senhor ministro ontem se ele compreendia como é que um jogo decisivo do basquetebol não podia ter ninguém a assistir e ontem e anteontem, no Pavilhão Rosa Mota, que é um recinto fechado, estiveram 2.500 pessoas aglomeradas, a maioria sem máscara, a ver um espectáculo de música. Ele não me soube responder e eu disse-lhe «Olhe, não sabe o senhor nem sabe ninguém, porque as coisas estúpidas só os estúpidos é que são capazes de compreender e é sinal que o senhor afinal é inteligente»”. Pinto da Costa acabou com um ataque ao Governo que, ainda por cima vindo de quem vem, de alguém tradicionalmente próximo do PS, vale mais do que todas as críticas juntas da oposição: “Deixava um conselho ao senhor Primeiro-Ministro António Costa: demita-os, e, se não é capaz, demita-se o senhor.”

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Agora, o circo continua, tendo desta vez por objecto as festas dos Santos Populares. Medina, em Lisboa, interdita todos os festejos do Santo António. Moreira, no Porto, permite os festejos do São João sob certas condições. Rui Rio, ao lado do seu candidato à Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, que critica Medina, critica Moreira, assim criticando implicitamente Moedas, num golpe político de incalculável subtileza que só ele ousaria imaginar. E a infalível Dra. Graça declara o que toda a gente esperava que declarasse, ilustrando a sua costumeira sageza: “Tudo pode ser feito desde que haja contenção.” Não faltará muito tempo para termos o muito desejado momento da avisada opinião de Eduardo Cabrita, sempre irritado com a jornalistagem e uma história ou outra de um mail que, por puro azar, não foi recebido, vindo da polícia e de mais acusações sobre “insidiosas mentiras”. É só esperar um bocadinho. Ele não falha, até porque a consciência que certamente tem da sua perseverante incompetência costuma manifestar-se assim. Mas antes, talvez tenhamos ainda direito a uns discursos de António Costa sobre a “transição digital” e a “transição climática”, invariavelmente violando os princípios básicos da transição silábica (à qual, confesso, já me habituei, excepto quando ele cita Camões – não haverá por aí uma leizinha que lhe proíba o crime?). Será mais uma oportunidade – sortudos é o que somos – para aprendermos com a experiência.

A ministra de Estado e da Presidência Mariana Vieira da Silva assegurou-nos que os adeptos ingleses viriam numa bolha e à Inglaterra numa bolha voltariam. Como se viu, e como Marcelo fez questão de notar, a afirmação foi precipitada. Mas uma coisa é certa e segura: o Governo vive dentro de uma bolha, sistematicamente alheado do que fora dela se passa. A culpa de todo o mal que se verifica ou possa verificar é da ralé que fora da bolha governamental vive. E a magna questão que se coloca aos Portugueses é: não se pode soprar a bolha para muito longe, se possível levando com ela todos aqueles que, mesmo na oposição, a ela vivem colados? Que magnífico que seria ver aquela gente aprender, por uma vez que seja, alguma coisa com a experiência.

Se tal não for possível, e mesmo sendo ateu, só me resta rezar a São João, Santo António, São Pedro e a todos os outros santos e santinhos que me aconselharem. Será a minha transição pessoal. Como salto de fé, não me parece mais irracional do que a “transição digital”. E, como dizia um sábio, não tenho nada a perder, e, ganhando, ganho muito. Além do valor da experiência, é claro.