Cem anos em que os canibais portugueses têm tentado instaurar a antropofagia em Portugal. Cem anos a convencer-nos das virtudes e dos benefícios de comer carne humana. Cem anos em que a maioria dos Portugueses se tem recusado a participar na refeição. Quer como comensal, quer como prato.

Para celebrar, o Grémio Português de Canibais espalhou pelo país bandeiras com o símbolo do canibalismo. A amarelo, sob um fundo cor de cabidela de miúdos de miúdos, estão os instrumentos de trinchar e desossar usados no amanho das carcaças que os primeiros canibais comeram. Quer dizer, em rigor, nos banquetes inaugurais não se comeu tudo. Como sempre que se estreia um prato para muita gente, ainda não havia a noção das quantidades, fez-se comida a mais e acabou por sobrar bastante. Sobretudo, braços e pernas de crianças, que tinham pouca carne e eram sensaborões. Salgaram-se alguns restos, que foram consumidos como snacks, mas a verdade é que houve muito desperdício. Era o princípio do sonho, justifica-se.

É possível que cidadãos de países governados no passado por Grémios de Canibais, caso tenham visto as bandeiras, tenham sentido as pernas a tremer, um arrepio na espinha ou um nó na garganta, ao lembrar os tempos em que foram obrigados a comer pernas, espinhas e gargantas. Provavelmente, pernas, espinhas e gargantas de familiares e amigos. Para essas pessoas, o canibalismo foi real e deixou sequelas nos seus países. Desde logo, a nível nutricional.

Felizmente, em Portugal nada têm de temer. É que os canibais portugueses têm uma particularidade: são desdentados. Sim, eles desejam muito papar o seu semelhante. E, sim, nas suas reuniões reiteram as virtudes de uma dieta à base de chicha humana. E debatem tempos de cozedura e temperos, mais tarde cristalizados em teses com as receitas oficiais. E, é um facto, saúdam os Grémios congéneres de países onde se pratica o canibalismo, acusando quem os censura de ingerência interna na ingestão interna desses regimes. (Hoje, para dar um exemplo, gabam a iguaria que é o Bebé Uigure à Pequim).

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E celebram com orgulho os ideólogos internacionais do antropofagismo, os primeiros a postularem a superioridade do canibalismo sobre todas as formas de alimentação e a inevitabilidade de uma sociedade onde todos são canibais. E recordam, saudosos, os gloriosos festins do passado, em que os canibais de antanho se empanturravam com lombos de camponês à camponesa ou salada de orelha de montanhês à montanhesa.

E também relatam, orgulhosos, a história oficial do Grémio. Episódios em que líderes canibais portugueses visitaram os países que viviam sob o canibalismo, estudaram com os grandes chefs locais e voltaram maravilhados com as inovações culinárias. (Excluem da história, claro, os episódios desonrosos, de dirigentes que consideravam que talvez se pudesse acompanhar um braço com uns grelos, para cortar o intenso sabor a sovaco. Ou que fosse possível misturar um bocadinho de frango nos croquetes, para variar. Enfim, traidores que não respeitavam o canibalismo científico e que, por isso, há que apagar dos registos oficiais. Assim como execram os dissidentes que, tendo pertencido ao Grémio, às tantas disseram: “Um dia descobri que canibalismo significava mesmo comer pessoas e fiquei horrorizado. Tive de sair”.)

E, claro, os canibais portugueses recordam com nostalgia a época em que Portugal esteve quase, quase a tornar-se um país oficialmente antropófago. Até já tinham escolhido as primeiras coxas a serem jantadas e tudo.

Foi justamente então que uma pancada certeira lhes partiu os dentes e os deixou sem conseguir abocanhar como deve ser. Portanto, os estrangeiros não precisam de ter medo. Por mais que deseje, o canibalismo português não morde.

Nos últimos dias, aliás, o Grémio Português de Canibais fartou-se de receber os parabéns de Portugueses que, abominando o consumo de carne humana, reconhecendo-o como prática selvagem, mesmo assim simpatizam com os canibais de Portugal. É que, dizem, o canibalismo em Portugal é só teórico. Quando os canibais falam num sistema em que se come carne humana, é enquanto metáfora. Lambem os beiços ao fazê-lo, certo, mas é apenas um recurso linguístico. Literalmente.

Ao longo deste jejum, afirmam, os canibais portugueses até têm desempenhado um importante papel na nossa sociedade. Enquanto obcecados com comida (se bem que um tipo muito específico de comida), levantam questões pertinentes sobre a alimentação, sobre a saúde dentária, sobre problemas digestivos (sabia que as unhas, se ingeridas em excesso, podem causar apendicites? É por isso que é necessário retirá-las antes de ingerir dedos fritos) ou sobre a vantagem de, por enquanto, se substituir a carne humana por produtos à base de soja.

No meio das felicitações, lembrou-se que o canibalismo, como ideal, é muito lindo. Como não admirar a utopia romântica de alimentar toda a humanidade à base de humanidade? Houve erros, é verdade. Sabe-se que o verdadeiro canibalismo nunca foi testado. Houve alturas em que se comeram pessoas, mas, para ser verdadeiro canibalismo, elas têm de se deixar comer voluntariamente. É pena que ainda não se tenha atingido esse estágio de consciencialização. As pessoas são egoístas, muito agarradas aos seus braços e pernas.

Daí que, repetem, não seja preciso recear os canibais portugueses. Eles têm fome, mas não têm dentes. E, que se tenha notado, não tem havido um açambarcamento de próteses dentárias.

São bons argumentos. Embora esqueçam a nova moda do slow cooking, que torna a carne tão tenrinha que nem é preciso mastigar. É natural que haja quem ache que os canibais servem o povo português, quando, na realidade, ainda estão a preparar-se para o servir. Enquanto não conseguem provar portugueses, tentam provar a sua importância para os portugueses.

Enfim, mas não é a ocasião para se falar nisso, agora é tempo de festejar. E de saudar os canibais portugueses. Parabéns! Espero que tenham um aniversário feliz. Esse bolo tem bom aspecto. É de quê? Deixem estar, é melhor não saber.