A 7 Outubro, o Brasil vai passar, porventura, pela mais peculiar das suas eleições presidenciais desde que se tornou uma democracia em 1985. Os dois principais candidatos deverão ser um representante de Luiz Inácio Lula da Silva, líder do Partido dos Trabalhadores (PT) e o ex-presidente mais popular de sempre, mas atrás das grades por corrupção passiva e branquamento de capitais; e Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL), que já declarou de várias formas o seu ultraconservadorismo, a sua nostalgia pelo regime militar ditatorial e não esconde de ninguém ser uma espécie de discípulo político do presidente norte-americano Donald Trump.

Sem surpresas, o Tribulnal Superior Eleitoral declarou nula a candidatura de Lula da Silva no enquadramento legal da lei da “ficha limpa”, que não oferece grandes dúvidas: qualquer indivíduo condenado por corrupção em segunda instância é inelegivel para cargos públicos. Sobra Fernando Haddad, candidato a vice pelo PT, que muito provavelmente (o assunto será hoje discutido pelos dois numa visita à prisão) fará o papel de uma espécie de holograma de Lula, ou seja, será o homem que, a ser eleito, sê-lo-á por, em nome de, e para cumprir diretivas do ex-presidente do Brasil.

“Em nome de” é mesmo a expressão certa. Lula está judicialmente impedido de fazer ou aparecer (em imagens, inclusivamente) em campanha, mas o discurso do PT passou a ser só um: a guerra aberta contra o sistema jurídico brasileiro. Por outras palavras, todo o discurso político do Partido Trabalhista tem gravitado à volta da prisão de Lula, que os petistas não hesitam em dizer que foi fraudulenta. Na versão do partido e dos seus apoiantes, a justiça está tão corrompida que prendeu um inocente por razões políticas.

Esta versão dos factos traz três problemas fundamentais para o centro do processo eleitoral. Em primeiro lugar, se Lula concorresse e as eleições fossem hoje, ele seria o incontestável vencedor da primeira volta com 39% das intenções de voto. Haddad recolhe apenas 4%, o que o colocaria em quarto ou quinto lugar. Assim, a campanha eleitoral do PT terá como base duas únicas ideias – a narrativa dos méritos do passado e a questão da justiça. Não haverá espaço para discutir ideias e o futuro.

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Em segundo lugar, esta discrepância de intenções de voto não reflete apenas a popularidade ímpar de Lula na história da democracia brasileira e o desconhecimento da população de quem é Fernando Haddad (prefeito de São Paulo entre 2013 e 2017), mas o facto de o PT, enquanto partido político e por força deste processo, se ter reduzido a uma quase insignificância.

O terceiro e mais grave dos problemas é que a falência do PT enquanto partido e a suspeita lançada sobre a justiça brasileira (afinal quem é que é corrupto?) criaram uma crise institucional na qual o Brasil ficará imerso por tempo longo e indeterminado.

Mas a crise institucional não fica por aqui: o candidato que recolhe o segundo lugar nas intenções de voto, caso Lula concorresse, e passa para primeiro no cenário actual, é Jair Bolsonaro, deputado federal do Rio de Janeiro, agora do PSL. É um nostálgico do regime militar autoritário que governou o Brasil (1964-1985). São suas as seguintes palavras: “Falam tanto da nossa ditadura militar, mas aqui no Brasil tínhamos paz nas ruas, havia pleno emprego, respeito, família, direito a ir e vir”.

À maneira populista, Bolsonaro não tem um programa eleitoral propriamente dito, mas um conjunto de ideias ultraconservadoras. A sua bandeira eleitoral é acabar com a violência, usando todos os meios, incluindo a proposta de armar a população, recuperar a pena de morte, baixar a maioridade penal e aumentar os poderes das forças policiais. De resto, agita uma cartilha já conhecida: os seus discursos estão cheios de referências religiosas e elogios ao regime militar e à família tradicional. É contra a entrada de refugiados e migrantes no Brasil e contra os direitos das minorias, nas suas mais diversas formas.

Assim, a popularidade de Bolsonaro e sua sua provável passagem à segunda volta das eleições presidenciais abre mais duas feridas institucionais no Brasil: uma crise do próprio regime democrático e a constatação que, como em muitos Estados por esse mundo fora, a sociedade brasileira está profundamente polarizada. Neste segundo sentido, Bolsonaro não é uma causa mas um sintoma da insustentabilidade que por lá se vive já há alguns anos. Daquele tipo em que se prefere deixar cair a liberdade (com todos os seus defeitos) em nome de uma estabilidade desconhecida, mas desejada.

Até às eleições, daqui a pouco mais de um mês, há dois cenários possíveis: Haddad recupera terreno e passa à segunda volta – como holograma de Lula – contra Jair Bolsonaro, que carrega consigo o fantasma da ditadura militar. Ou Haddad falha e Bolsonaro disputará a segunda volta com um dos candidatos mais moderados, Marina Silva da REDE ou Geraldo Alckmin do PSDB. Qualquer dos cenários testemunha a fraqueza das instituições brasileiras.

Não me atrevo a arriscar qual será o mais provável, nem qual será o desfecho destas muito atípicas e perigosas eleições presidenciais. Mas uma coisa é certa: o Brasil está profundamente mergulhado numa crise institucional que não poupa nada nem ninguém. Percorre partidos políticos, justiça, tipo de regime, polarização social. Como e quanto tempo será preciso para ultrapassá-la e que tipo de bonança se seguirá à tempestade são verdadeiras incógnitas que duvido que alguém esteja disposto a tentar decifrar.