Reza a história que o termo podcasting foi criado pelo jornalista Ben Hammersley, em fevereiro de 2004, para se referir à “revolução sonora” que procurava conciliar a magia da rádio com as possibilidades do mundo online. Vinte anos depois, os podcasts parecem ubíquos, fazendo com que uma das grandes dificuldades dos nossos dias seja uma boa gestão do tempo por forma a conseguirmos ouvir todos os podcasts que nos interessam. Esta tarefa tornou-se ainda mais complicada, uma vez que Ricardo Araújo Pereira nos presenteou em setembro com Coisa que não edifica nem destrói, dedicado a escalpelizar as várias dimensões do humor.

Fazer podcasts humorísticos é uma escolha segura: os estudos revelam que estes se mantêm em todos os países como os mais populares – mas não foi essa a decisão do humorista português, que parece retirar mais prazer da abordagem teórica, filosófica, intelectual ao humor do que do próprio humor. Partilha, nesse sentido, a ideia de Terry Eagleton de que “saber como funciona uma piada não a sabota necessariamente, do mesmo modo que saber como funciona um poema não o destrói.” E com uma curiosidade quase infantil, dedica-se a analisar o fenómeno humorístico, fazendo-nos recordar o diagnóstico feito a Philip e a Roth (no limite sempre brumoso entre ficção e autobiografia que dá forma aos seus livros) em Engano:

“Só te dignas viver para alimentar a conversa. Para ti, até o sexo é secundário. Não é o eros que te impele… nada te impele. Apenas essa tua curiosidade infantil. Só essa tua ingenuidade deslumbrada.”

Dessa ingenuidade deslumbrada resulta o argumento continuamente revisitado por RAP e que dá forma ao título do podcast, por empréstimo de Machado de Assis: o humor não tem o propósito de edificar ou destruir. A sua finalidade é apenas provocar o riso – esse processo fisiológico tão natural ao corpo humano, mas que pode ser instigado de tantas maneiras que não consegue ser captado por uma definição essencialista (as teorias sobre o mecanismo e a causa do riso multiplicam-se).

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E se o riso sempre existiu (tendo sido bastante maltratado filosoficamente ao longo dos séculos), o humor, enquanto prática sujeita a reflexão filosófica, parece ser um fenómeno moderno: terá sido a língua inglesa a apropriar-se do termo francês humour e a conceder-lhe, no século XVIII, o sentido de comicidade que usamos hoje. Tem sido apontado que essa origem britânica resultaria do sistema político inglês (Hugh Blair) ou do desenvolvimento de uma disposição burguesa de cavalheirismo e simpatia (Terry Eagleton). Mas em qualquer das hipóteses parece estar subjacente a ideia de que o humor floresce em sociedades liberais, isto é, em sociedades que garantem a separação entre esfera pública e esfera privada.

A garantia de um domínio privado é provavelmente um dos traços mais significativos da modernidade liberal: permite a existência de um espaço de autonomia e prazer sem propósito e isso garante, por sua vez, o florescimento da expressão e da técnica humorísticas. Estando libertos das exigências da esfera pública, é-nos permitido rir e fazer rir de muitas coisas, até de histórias inventadas e piadas politicamente inaceitáveis, que não visam outra coisa que não o riso. É neste sentido que o humor se equipara a uma forma de arte – tornando coerente que os humoristas sejam designados como artistas –, devendo gozar, como tal, da mesma autonomia de não estar comprometido com os valores que regem a esfera pública.

Regressemos a Philip Roth. Naquele mesmo livro, e perante acusações de misoginia, difamação e degradação das mulheres, o protagonista defende-se:

“A única coisa que posso dizer é que essa vossa suposta democracia da igualdade de direitos tem propósitos e objetivos que não são os meus como escritor.” (itálico meu)

O mesmo é dizer: a literatura pertence à esfera privada, à esfera do deleite pessoal de quem escreve e de quem lê e não se sujeita às regras, propósitos e finalidades da esfera política. E nesse jogo de liberdade, a imaginação age como um carniceiro: “Quando a imaginação termina o seu trabalho de carnificina sobre um facto, acreditem, já não há qualquer semelhança com um facto.

Seria também esse o jogo do humor.

Verdades emocionais

Se assim é, como compreender o artigo publicado pela revista The New Yorker, no mês passado, denunciando a falsidade das histórias que o comediante Hasan Minhaj usa nos seus espetáculos?

Partindo da sua experiência biográfica (muçulmano de origem indiana), o trabalho de Minhaj caracteriza-se por ser aquilo que nos Estados Unidos se designa como humor que visa justiça social para sensibilizar a audiência para os problemas sociais com que certas identidades têm de lidar. Confrontado pela jornalista daquela peça, Minhaj reconheceu que muitos dos episódios de Homecoming King e Patriot Act (programa que foi reconhecido com um Emmy, um Peabody Award e dois Webby Awards) não aconteceram: foram em grande medida inventados.

Minhaj não se sente incomodado com essa revelação: considera que há uma semente de verdade em cada uma das suas estórias; mas, mais importante do que isso, defende que a verdade emocional (o que sentimos sobre uma determinada experiência) é mais importante do que a verdade factual (o que importa, no fundo, é o objetivo político da história e não se ela realmente aconteceu).

Caberá este argumento na ideia de autonomia da obra de arte, como defende Philip Roth?

O caso de Minhaj exemplifica a transformação que se tem vindo a verificar no domínio humorístico, em que o objetivo deixa de ser o riso e passa a ser “a justiça social”. Foi assim que Minhaj se assumiu como um comediante que tem em vista um propósito político, mas ao assumir o papel de ativista criou uma relação diferente da sua obra com o público: o seu Patriot Act visa “explorar a paisagem cultural e política moderna com profundidade e sinceridade” (itálico meu) e a sua voz no espaço público pretende “dizer a verdade ao poder”, isto é, denunciar a injustiça das estruturas sociais. Ao dar este passo, Minhaj abandonou a autonomia da esfera privada; o seu trabalho passou a estar politizado.

Esta opção de colocar a arte ao serviço da política (que encontramos em muitos humoristas portugueses) é a estratégia básica do movimento identitário por justiça social: não há separação entre esfera pública e esfera privada e todas as dimensões da vida devem ser politizadas. É a aplicação do velho lema feminista de que “o privado é político” e de que, nessa medida, nenhuma das nossas ações, mesmo as mais privadas ou do domínio familiar, nem os nossos pensamentos mais íntimos se podem esquivar à lógica política e devem ser policiados para estarem de acordo com os princípios de justiça social. E isto vale em particular para o humor, um alvo preferencial deste tipo de pensamento por se considerar que as piadas revelam os nossos preconceitos mais dissimulados. E assim o nosso argumento confirma-se: sem esfera privada, não há lugar para o humor.

Minhaj, ao atribuir ao seu trabalho um propósito político, ao abandonar a arte pela arte e o riso como finalidade do seu humor, passou a ter de assumir a responsabilidade exigida àqueles que agem na esfera política: o compromisso com a verdade. Isto não significa que os atores na esfera política digam sempre a verdade; mas significa que passam a ser avaliados por esse compromisso com a verdade. É por isso que as suas “verdades emocionais” têm sido amplamente criticadas e muitos têm recordado como elas se assemelham aos “factos alternativos” de Kellyanne Conway ou às mentiras de George Santos, colocando os Social Justice Warriors muito perto dos acólitos de Donald Trump. O que não deixa de ter a sua piada.