A nova lei sobre Procriação Medicamente Assistida (PMA), que a esquerda aprovou quinta-feira no Parlamento e se prepara para impor ao país, é uma aberração. Não é preciso ser-se conservador nem de direita para ver isso. Basicamente, o que a lei determina é que qualquer pessoa do sexo feminino, seja ela “solteira, divorciada, viúva ou lésbica”, pode reclamar apoio do Estado para engravidar. Porque nestes assuntos, apesar de esquerda e jornalistas “progressistas” se esquecerem sempre de esclarecer o “pormenor”, o que está em causa não é a legalidade da gravidez e sim o seu financiamento pelo Estado. Não passarão três meses antes que os defensores da medida, com a habitual boçalidade, venham clamar, já não contra a “discriminação” de viúvas e lésbicas mas das mulheres “socialmente desprotegidas” ou outra tolice semelhante. É assim que garantir que mulheres solteiras ou lésbicas possam engravidar com subsídio do Estado se sobrepõe a questões menores como a extensão da rede de cuidados continuados ou a gestão das listas de espera dos doentes oncológicos. Capturado por esta gente de classe média urbana, entrincheirada nas redacções e na academia e que nada tem em comum com o “povo” de que tanto gosta de falar, o SNS vai-se transformando paulatinamente, de estrutura assistencial em loja de conveniência.

Claro que uma coisa é a deputada Isabel Moreira vir declarar “o ponto zero em termos legais de discriminação” e outra, bem diferente, é pôr isso a funcionar nos hospitais. As unidades de PMA têm protocolos de trabalho e critérios de selecção longamente discutidos e validados, que não se mudam de repente, por decreto. Nem se coadunam necessariamente com a agenda “fracturante” da nossa esquerda. Claro que o mesmo fervor militante que agora empurrou o próprio PCP, habitualmente parco nestes delírios, a votar a lei, mobilizar-se-á a seguir para vigiar a acção das unidades hospitalares, denunciando zelosamente atrasos, violações e atropelos da lei. Haverá artigos e reportagens, crónicas no Público e vagas no Facebook, contra a “discriminação” e, de uma maneira geral, contra a “reacção” “encapotada” (a esquerda gostou sempre desta coisa do “encapotado”, vem do PREC). A jornalista Fernanda Câncio dará uma ajuda, nos intervalos das suas incursões às lojas de fast food. Catarina Martins fará uma declaração, de olho arregalado, apelando aos bons sentimentos do povo. E, no meio dessas intermináveis listas de espera que permeiam todo o SNS, haverá um casal que será preterido na “procriação” por um par de lésbicas, para o retrato.

Entenda-se. Não me assusta a “desagregação” dos “valores da família”, ou que lésbicas e solteiras possam engravidar e serem mães. Isso é com elas e, de resto, se há “crise da família”, não é, certamente, por causa de meia dúzia de mães solteiras. O que me preocupa e irrita é que, precisamente, uma simples meia dúzia de pessoas, acolitadas por essa inenarrável organização que dá pelo nome de ILGA (*), consiga atropelar a agenda da saúde e impor esta ridicularia como assunto de Estado. Não sou ingénuo e compreendo que, a António Costa, este folclore dê jeito, porque sempre distrai a plebe de assuntos mais graves e importantes como as negociações com Bruxelas ou a manutenção de medidas austeritárias com outros nomes. Mas irrita e desgosta que, mais uma vez, recursos vão ser desperdiçados e projectos vão ser atropelados porque um grupinho de esganiçadas vem berrar para a praça pública e, ao governo, dá jeito que elas berrem.

Uma última palavra a propósito da “discriminação” que a deputada Isabel Moreira decretou definitivamente eliminada. Acho curioso que solteiras, viúvas e lésbicas possam engravidar com esperma anónimo mas os seus equivalentes masculinos, solteiros, viúvos ou gays, não possam recorrer a barrigas de aluguer, que continuarão a ser só para os ricos. Mesmo o Bloco, que quis legalizar o “métier”, argumentou que o fim era que “todas as mulheres possam ser mães”. Este peculiar entendimento da “igualdade” assenta na velhíssima e salazarentíssima ideia de que “mãe é mãe”. O pai pode ser “incógnito”, a mãe não. (Esquecia-me da excepção, tão tuga: o “Cristianinho”, mas o que é que se não desculpa ao rapaz-maravilha desta ditosa pátria?) Enfim: os homens, se quiserem crianças, que as adoptem; as mulheres, essas sim, têm direito à “procriação”. Isto só vem recordar-nos que não estamos de facto a assistir a nenhum movimento igualitário. Apenas ao funcionamento de velhos mecanismos de pressão na defesa de privilégios inconfessáveis. Neste caso, matriarcais.

Médico

(*) O meu preconceito contra organizações como a ILGA não é gratuito. A verdade é que a ILGA e organizações similares se permitem exercer pressão e fazer lobbying numa extensão e com recurso a métodos que nunca seriam aceites a qualquer organização menos “fracturante” e com menos apoios nas redacções, na academia e noutros meios com especial peso no espaço público. Digamos: a CIP, os defensores das touradas ou, até, um clube de futebol.

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