“Se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer
às outras pessoas aquilo que elas não querem ouvir”
George Orwell

1) Volvidos setenta anos desde a primeira edição de “1984”, o negro romance que tornou Orwell imortal, o conceito de utopia nunca esteve tão presente no seio das periclitantes democracias liberais, um pouco por toda a parte.

Por cá, neste rectângulo à beira-mar, o triunfo do politicamente correcto e da demagogia fácil que nos servem diariamente contribui tão-só para a rendição da sociedade a um regime que deixou de ser meramente esquerdizante para passar a estar refém da agenda dogmática e radical da extrema-esquerda. E, até, dos seus tiques semi-totalitários. A utopia parece ter desembarcado em Portugal. Terá vindo para ficar?

Era uma vez um homem que perdeu as eleições. Inconformado com o chumbo que lhe deu o povo no teste da sua vida, decidiu tomar o poder de assalto, desprezando olimpicamente um dos princípios mais elementares em democracia: o direito de escolhermos quem nos governa. Todos sabemos o que aconteceu a seguir. Foi o fim do voto útil. Mas se isto vale à esquerda, vale com certeza à direita.

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Tudo começou com a ideia de que uma economia periférica tão endividada quanto a nossa podia ser expansionista. A ideia de que, muito embora tivéssemos tido que batalhar arduamente para sair do buraco em que havíamos caído, e independentemente da circunstância económica e financeira não ser ideal (longe disso), era possível zarpar numa aventura infeliz, através da qual se têm vindo a anular reformas cruciais para o país, num esgar keynesiano que não se coaduna com a realidade de um Estado onde, para todos os efeitos, não há dinheiro. É em tempo de paz que se prepara a guerra. Portugal não aguenta outro embate violento porque não o reformámos.

Face a estes devaneios perigosos da geringonça, amarrada aos dogmas e aos preconceitos do costume, a nossa sorte foi a conjuntura favorável na Europa, de que beneficiámos (e beneficiamos) em larga medida, bem como o alívio propiciado pelos programas de quantitative easing do BCE. Num país sem inflação e, por isso, incapaz de maquilhar um passado pouco ou nada produtivo, devemos a medidas extraordinárias como esta a capacidade de refinanciar a dívida pública a taxas de juro aceitáveis.

Três anos depois, continuamos pasmados a assistir à governação de uma engenhoca que não tem o mais breve lampejo de visão económica, que nos cativa serviços fundamentais (como na Saúde) e nos impõe um garrote fiscal de que não há memória no Portugal democrático (nomeadamente sobre as empresas).

Em matéria de política económica, muito há a fazer num país onde a dívida pública ainda ronda os 125% do PIB, com níveis baixíssimos de produtividade e as esperanças todas depositadas no turismo – que se fosse um desígnio nacional seria estudado com inteligência e desenvolvido com eficiência, criando riqueza sem a descaracterização selvagem dos nossos centros urbanos e sem o exílio dos casais de classe média para a periferia.

E quem fala de política económica, fala de medidas fiscais. Percorrendo o Orçamento do Estado para 2019, não se vislumbra uma medida que seja com vista ao estímulo do tecido económico. Nenhuma, a não ser o Pagamento Especial por Conta (PEC). Mas aqui, pergunto: que impacto tem uma medida que, na melhor das hipóteses, alivia a tesouraria de algumas empresas em 150 milhões de euros? A juntar ao fracasso absoluto que foi, por exemplo, a descida do IVA da restauração, uma medida eleitoralista que não baixou os preços das refeições nos restaurantes nem criou um único posto de trabalho e que, como se não bastasse, acabou por se traduzir num rombo de 600 milhões de euros nos cofres do Estado?

Só pode ser piada de mau gosto.

A boa política económica, de que tanta gente fala mas de que já não há memória em Portugal, é aquela que se faz através de reformas inteligentes e ambiciosas. É aquela que implica a antecipação das grandes tendências económicas e financeiras. É aquela que tem em conta a progressiva digitalização da sociedade global. É aquela que se preocupa com melhor emprego no presente, mas também no futuro, onde a inteligência artificial e a robótica prometem alterar para sempre o paradigma do mercado de trabalho.

E é também aquela que se foca na boa performance das nossas pequenas e médias empresas que são, para todos os efeitos, o motor da economia. É justamente por isto que a reforma fiscal continua a ser uma prioridade absoluta, num tecido económico onde os nossos empresários continuam asfixiados pela carga fiscal exorbitante que se pratica. Mais do que mexer em derramas estaduais para sediar fábricas no interior do país ou desobrigar empresas de pagar o PEC, há uma medida que continua em cima da mesa: a baixa de IRC.

Uma redução deste imposto, significativa mas sustentável, daria mais liquidez às empresas, que consequentemente poderiam reinvestir na sua actividade e criar mais postos de trabalho. Para não dizer que levaria a que tantas outras deixassem de pagar impostos em países como a Holanda ou a Irlanda, tendo estímulos para ficar em Portugal. E acabaria por atrair novas firmas multinacionais.

Tudo isto o Governo põe em cheque. E quando Mário Centeno anuncia que ter um défice zero é uma questão de tempo ou quando Portugal ganha os óscares do turismo, dizem-nos que está tudo bem. Emmannuel Todd diria que vivemos numa ilusão económica. A ilusão é a triste realidade que ajudámos a criar, ao ceder a esta utopia de caixeiro-viajante que António Costa nos pôs em cima da mesa.

2) Mas a economia não é o único campo onde medram as urzes da utopia. Outros há onde ela também floresce, como na gestão política dos fracassos que este Governo tem vindo a protagonizar: o “assalto” a Tancos, a tragédia de Pedrogão, a ruína do SNS e, mais recentemente, a vergonha de Borba. Todas elas situações onde a geringonça não lava as mãos: tira-as. Aliás, a forma como tem resistido a falhanços desta magnitude, mantendo a sua popularidade, mostra que o método é eficaz.

É eficaz porque nós, os governados, não desconfiamos das verdades com que o Governo se desvincula das crises.

Vendem uma realidade que tanta gente aceita, sem pestanejar. E como não? Fomos sempre tão infelizes e tão permeáveis a este género de discurso. Somos nós que aramos o terreno para as ideias da franja mais radical do PS e, claro, para as reivindicações do Bloco. E se Catarina Martins delira porque sabe que este é o seu tempo, Pedro Nuno Santos sorri porque sabe que o seu não tardará a chegar.

E entretanto, num cenário de gradual declínio dos modelos liberais, vão sendo paridas estas pseudo-ditaduras do politicamente correcto que, com a sua pretensão de reeducar a sociedade e de rasgar as tradições democráticas – ao invés de dialogar e de reformar – não constituem nenhuma ideia original. Muito antes pelo contrário: já deram mostras das consequências nefastas que impõem às sociedades onde são postas em prática.

Em literatura, esta concepção de sociedade teria expoente máximo naquela fantástica Oceania de George Orwell, onde a liberdade era uma ilusão. Todavia, na realidade, em qualquer direcção que olhemos, encontramos perversões da liberdade e da democracia. Como nas touradas. Não gostam de corridas? Fiquem em casa. É obsceno que as crianças vejam? Mudem de canal. Respeitem as tradições dos outros tal e qual como eles respeitam as vossas. Ou acaso se julgam membros de uma qualquer cúpula voadora, detentores de uma verdade insofismável que deve ser imposta aos demais?

É inacreditável o estado a que chegámos.

Por outro lado, a capitulação à ideia de paraíso que a esquerda nos impõe no curto-prazo pode originar um outro problema: a exposição a movimentos populistas de extrema-direita. Todos damos a democracia por garantida. Mas vejam o que aconteceu na Inglaterra com Farage, na Itália com Salvini ou, até, no Brasil com Bolsonaro. É assim que lhes abrimos a porta. É esta a onda que cavalgam. Julgam que Portugal é um oásis? Que décadas depois continuamos “orgulhosamente sós” na Europa? Olhem à volta e não caiam nesse erro fatal.

Nesta paisagem idílica em que vivem os portugueses, estas são questões “menores” – um erro que noutras democracias (mais maduras) se revelou fatal.

Mas enfim. Por agora, quase podemos adivinhar o que o futuro próximo nos reserva: a Mariana Mortágua numa secretaria de Estado e os animais à mesa, nos restaurantes. Dava uma bela serigrafia. É o triunfo do politicamente correcto.

É o império da utopia.

Economista