Enquanto pedopsiquiatra, centro a minha prática clínica nas crianças e nos jovens. Nas intrincadas relações que estabelecem com as suas famílias e com os diferentes personagens e fenómenos de uma sociedade paradoxal. Trata-se de uma sociedade inegavelmente consagrada às aquisições técnicas e tecnológicas, à exponenciação inacreditável de possibilidades à distância de um clique. Uma sociedade patrocinada pelas inesgotáveis potencialidades do intelecto humano, diariamente traduzidas em sucessivos exemplos de inventividade e superação. Como deixar de citar, a título de exemplo recente, a disponibilização tão célere duma vacina por que tanto ansiávamos e que nos devolve a esperança de alguma normalidade?

Falamos, ainda assim, de uma mesma sociedade prolífica em exemplos de precariedade a diferentes níveis. Preenchem-se os noticiários de uma interminável enumeração de bizarrias morais, de injustas e incompreensíveis circunstâncias sociais. Tomam-se, tantas vezes, decisões com base em motivações questionáveis. Procuram-se recompensas imediatas e gere-se a frustração com demasiada dificuldade. Trata-se, inegavelmente, de uma sociedade de posse e de consumo, experiente na multiplicação de identidades coartadas e precárias. E detêm, os pais e cuidadores legais, o poder de lapidar os seus preciosos diamantes em bruto, torná-los autênticos e robustos, protegendo-os não das adversidades que seguramente enfrentarão, mas da fragilidade e precariedade com que o poderão fazer.

Cada criança e cada jovem transportam, em si, um tremendo potencial que aguarda pela oportunidade de se afirmar. Estruturem-se as bases, concedam-se as oportunidades e assista-se ao interminável poder de alcance que eventualmente os sublimará. Ainda que, por vezes, aprisionados numa aparente indisponibilidade para refletir, de afetos embotados e crítica entorpecida. Identifico uns poucos, dotados de uma sensibilidade ímpar e plenos de vitalidade, mas envolvidos num torpor que os amordaça e boicota. Talvez repliquem o seu modelo familiar, ele próprio embotado e entorpecido. Ou talvez procurem o seu caminho, na ausência de uma estrutura que os oriente. Percebem-se, com límpida nitidez, as consequências da carência de alicerce e de estrutura. São os pais ou cuidadores legais os garantes de uma estruturação harmoniosa e perene. Mais do que o direito, o dever e a responsabilidade de perentoriamente se posicionarem e afirmarem como referências. Um dever e uma responsabilidade que se firmam com a criança e com a sociedade onde a integram. E nessa senda, há a capital importância da supervisão e do controlo externo. A supervisão (onde está? com quem está? o que está a fazer?) e o controlo externo (regras e limites consistentes) são dimensões absolutamente essenciais do exercício da parentalidade.

A adolescência inaugura a salutar procura de independência e autonomia, traduzida numa inelutável propensão para se viverem novas experiências exteriormente ao ambiente familiar. Uma evidência normativa e absolutamente determinante para a construção da sua identidade. Supervisão e controlo externo adequados constituem um fator de proteção preponderante contra a miríade de ameaças sociais e psicológicas que as crianças e jovens enfrentam. Importa, ao início, conduzi-los pela mão. Ensiná-los a serem, muito mais do que a terem, até ao dia em que se conduzirão sozinhos. E o controlo que se lhes oferece (externo) será gradualmente reduzido, à medida em que o seu próprio controlo (interno) se impõe, maduro e confiável. Trata-se de uma atitude de dedicação plena, de se posicionarem os pais como referências permanentes e consistentes.

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Para os padrões de comportamento disruptivo dos jovens contribuem, em doses por vezes imprevisíveis, aportes de natureza genética, neurobiológica e temperamental, entre um vasto rol de suscetibilidades individuais e pouco controláveis de risco. Sabe-se, no entanto, que os problemas de comportamento dos jovens se relacionam muito estreitamente com aspetos estruturais da parentalidade. Pais de crianças e jovens com quadros comportamentais disruptivos tendem a evidenciar inconsistência na definição de regras e limites, maior propensão para carências de supervisão, problemas de comunicação intrafamiliar e dissonância parental. O estilo parental adotado influencia e, não raras vezes, assume capital preponderância na definição das diferentes trajetórias desenvolvimentais dos filhos. É, inclusivamente, conhecida a frequente transmissão intergeracional dos estilos parentais, legado que indelevelmente se repercutirá no estilo parental que os filhos adotarão futuramente. Num estilo de controlo autoritativo e persuasivo (nem autoritário nem permissivo), um registo nem sempre fácil de conseguir, a mão que empurra em jeito de incentivo será a mesma que deverá resgatar ou impedir numa situação de ameaça iminente ao virar da esquina. Um amor firme, à base de responsividade e exigência.

As recentes experiências de confinamento aos domicílios despojam-nos de peneiras e confrontam-nos cruamente com a nossa permeável condição. Assim nos dispôs a vida todo o tempo que jurávamos não ter. A dádiva, para quem a reconheceu, foi solo do mais fértil. Sei de famílias que o foram plenamente, pela harmoniosa comunhão em que resistiram e prosperaram em tempos adversos. Mas nem todos, porém, traduziram em qualidade e disponibilidade o tempo que lhes foi concedido. Na ausência de temas disponibilizados “à mesa”, perfilaram-se os conteúdos audiovisuais que, de canto sedutor e disponibilidade permanente, sequestraram a exclusividade dos mais vulneráveis. No próprio panorama televisivo nacional, em tempos idos uma companhia familiar despretensiosa, assiste-se atualmente a uma selvática disputa territorial que se apropria da incauta disponibilidade dos mais expostos, por vezes os mais carentes de referência e orientação. Os modelos, outrora enlevados numa dimensão de cultura e sapiência, são hoje apartados em detrimento de referenciais mais efémeros. Assim, não basta aos pais estarem em casa. Porque a miríade de potenciais atentados ao bem-estar emocional dos seus filhos é infinita, ainda que aparentemente protegidos, no aconchego do seu quarto e de porta bem fechada.

É, assim, de capital importância que os pais e tutores legais se resgatem enquanto referências na vida das suas crianças e jovens, à custa da disponibilidade e da comunicação, fazendo uso de equilibrada supervisão e controlo externo. A alternativa, perante uma incontornável necessidade de orientação e referência, recairá nos tentadores e sempre disponíveis encantos de modelos bem mais precários e efémeros.