O teatro medieval nas suas obras de devoção preocupava-se com o destino dos seus espectadores. Ir ao teatro era, nessa medida, pensar se o espectador ia depois para o Céu ou para o Inferno. Hoje tudo isto pode parecer absurdo e a nossa vida cultural funciona em grande parte como um fim em si mesmo. O melhor que pode acontecer na sala de espectáculo é lá dentro, e não a possível influência que daí vem para o que suceder depois de sairmos dela. A arte é um ciclo completo, parece.

Vivemos num mundo mais simples. Ir ao teatro é apenas ir ao teatro. Mas nem sempre foi assim. O que aqui se fazia valia também na medida em que participava directamente naquilo que faríamos na vida depois desta. No fundo, duas vidas se viviam só por se estar vivo: ao vivermos esta vida, indo, por exemplo, ao teatro, estávamos também a participar no processo de escolher ir para o Céu ou para o Inferno. Se tivermos isto em conta, confirmamos que a Idade Média oferecia um inesperado e valioso multi-tasking. Nunca se estava a fazer uma coisa apenas.

Quando a pessoa lê Gil Vicente, também é isso que está em causa. Em toda a exuberância das suas farsas reside um jogo em que o divertimento é sempre muito sério. O fingimento do espectáculo é igualmente uma questão de vida ou de morte. Podemos reconhecer que o palco vivia muito perto do púlpito, até quando servia para criticá-lo. Não quero idealizar essa época mas, no reconhecimento de um papel comum entre peça e pregação, talvez ambas conseguissem ir até onde hoje receamos chegar: a um palco que sabe repreender e a um púlpito que sabe representar.

É irritante que hoje o palco repreenda tanto sem isso assumir, e é irritante que o púlpito não assuma a medida de representação que também lhe cabe. Os nossos artistas são pregadores de má qualidade sem ter noção da batina que constantemente vestem e isso só lhes estraga a qualidade da representação. Aos nossos pregadores falta-lhes a consciência de que lhes cabe moralizar, sem dúvida, mas com alguma centelha de performance. Lá está: tivéssemos algum do saudável multi-tasking medieval.

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Tenho tentado ler parte do plano nacional de leitura que vai pousando nas tarefas dos nossos filhos. Reli a “Maria Moisés” do Camilo, regressei ao Gil Vicente e, neste caso, à sua “Farsa de Inês Pereira”. Tem toda a graça que já esperava: as personagens, em vez de serem supostas digressões nos abismos insondáveis da nossa densidade psicológica (ah, o encanto contemporâneo do auto-elogio!), têm a liberdade última e hoje provavelmente perigosa de poderem ser ridículas. Não há nada tão espiritualmente ambicioso como ser ridículo e os medievais sabiam-no.

Quando as pessoas acreditavam em ser santas, serem ridículas estava ao dobrar da esquina. Aliás, quando as pessoas acreditam em ser santas, inevitavelmente reconhecem ser ridículas. É às pessoas sem consciência do pecado que o ridículo apavora, como uma espécie de condenação espiritual para quem deixou de crer em espíritos (e voltamos ao medo actual do cringe, sobre o qual já escrevi noutras ocasiões). Não estou a dizer que hoje não existem boas comédias com personagens ricamente ridículas. Mas o ridículo torna-se um veredicto, em vez de funcionar como um aviso.

A Inês Pereira é uma moça solteira que não quer um homem qualquer. Sente-se “coitada”, “encerrada em casa como panela sem asa”. A mãe sabe-a “preguiçosa” mas a filha está cheia de critérios próprios: a personagem masculina Pero Marquez pode até ser-lhe candidato nupcial dedicado e rico, mas falta-lhe ser “discreto em falar”. Inês acabará casada com um escudeiro que, de tanta discrição, a trancará em casa enquanto vai para a guerra. Gil Vicente sabia o que fazia: quem avalia os outros medindo-lhes os decibéis pode acabar calado contra a sua vontade. Ridículo? Claro. De outra forma não haveria nada a aprender.

Chega depois uma espécie de redenção à história de Inês porque o marido morre na guerra e o espalhafatoso Pero Marquez dá-lhe agora um casamento baseado noutra forma de discrição: a esposa faz o que quer e o novo marido que se aguente em sossego. “Asno que me leve quero,/E não cavalo folão;/Antes lebre que leão,/Antes lavrador que Nero.” Inês de tanto querer um marido acima do ridículo óbvio de Pero, acabou presa à elegância opressora de um nobre. No final, e já prevendo infidelidades futuras com um ermitão que era apaixonado por ela, decide pedir menos qualidade do seu casamento para “folgar onde quiser”.

Como saía a pessoa deste teatro de Gil Vicente? Sinceramente, não sei. Mas acho que na peça topei uma pregação: as duas vidas que os casamentos deram a Inês desmascaram muito em quem pensa viver apenas uma. A pessoa saía do espectáculo e podia até dizer “bravo!”, mas acrescentava também um “amém”.