Li no outro dia, na revista Current Affairs, uma entrevista de Noam Chomsky (“Noam Chomsky on How to Prevent World War III”) a propósito da guerra da Ucrânia. Não me surpreendeu nada. É verdade que condena Putin e elogia Zelensky. Mas o grosso da entrevista é ocupada pela denúncia ininterrupta dos Estados Unidos como causa de todos os males do mundo, como se estes fossem os únicos agentes verdadeiros na política internacional e todos os restantes países se limitassem a uma posição reactiva. O que, traduzido numa outra linguagem, significa que apenas aos primeiros se pode verdadeiramente atribuir culpa no que quer que seja. Os outros, dada a sua essencial passividade, são, por definição, inocentes.

Nisto, Chomsky não é sem dúvida original: muita outra gente diz quase o mesmo. A singularidade de Chomsky, uma singularidade que não cessa de me espantar, é outra. Consiste ela no facto de esta visão das coisas, desenvolvida numa extraordinária quantidade de livros, iniciada com a publicação, em 1967, de A responsabilidade dos intelectuais, conviver com uma obra riquíssima no campo da linguística e da chamada filosofia da mente. Não sou linguista, mas as hipóteses de Chomsky sempre me pareceram fascinantes e os seus trabalhos com maior incidência filosófica, que prolongam tais hipóteses, são, quase sem excepção, admiráveis. Como é que o Dr. Chomsky se pode transformar, quando muda de objecto de pensamento, quando passa da linguagem e do pensamento para a coisa política, no Sr. Noam? Que poção ingere ele? A poção deve ser fortíssima, porque o seu caso não deve ser confundido com o dos inúmeros cientistas que, brilhantes nos seus domínios, erram colossalmente em matéria política, por não perceberem a especificidade deste último objecto. O caso de Chomsky é muito mais radical, porque há método no erro. O Sr. Noam não é menos metódico e sistemático do que o Dr. Chomsky. Quer dizer: é muito metódico e sistemático.

Vejamos um pouco a entrevista. O que nos diz o Sr. Noam? Como escrevi antes, não nega a malfeitoria de Putin nem a dignidade de Zelensky. Mas ambas devem ser enquadradas num contexto mais vasto, até porque a Ucrânia não é a única crise no mundo, e esse contexto é dominado pela exclusiva actividade dos Estados Unidos. Os Estados Unidos são constitutivamente agressores. Veja-se Hiroxima. Vejam-se as brincadeiras das crianças em que os cowboys perseguem os índios. Veja-se a Ucrânia, onde os Estados Unidos “combatem a Rússia até ao último ucraniano”, conduzindo à destruição da Ucrânia e ao encaminhamento do mundo para uma guerra terminal. That’s us. Se os Estados Unidos fossem um país livre, isto não seria assim – mas não são, e não o são desde a Declaração de Independência. E, não o sendo, repetem a barbárie do seu predecessor na dominação imperial, a Grã-Bretanha, os horrendos crimes que a Grã-Bretanha cometeu durante séculos. No “Sul Global”, esta maléfica actividade não escapa a ninguém. Quando Biden apelida Putin de “criminoso de guerra”, o “Sul Global” ri-se, porque ele é exactamente isso mesmo. O “Sul Global” sabe o que se passa “nesta incivilizada e barbárica área do mundo que é a da Europa e dos Estados Unidos”. Estes últimos, particularmente, possuem o mundo e, por possuírem o mundo, podem levar a sua agressão e a sua violência a qualquer lado, inclusivamente ameaçando a Rússia, essa mesma Rússia que, através de Putin, ofereceu de bandeja aos Estados Unidos o seu mais desejado manjar: a Europa.

Esta maneira absoluta de pensar conhece excepções quando não se trata dos Estados Unidos. Assim, russos e ucranianos devem entender-se, e os segundos devem fazer cedências. Magicamente, aqui o estilo de pensamento sofre uma alteração e o Sr. Noam salta para um registo de razoabilidade política admirável. É preciso, diz ele, “prestar atenção à realidade do mundo”. É um luxo que ele a si próprio se oferece quando não está ocupado a enumerar sistematicamente os exemplos da actividade dessa causa única do mal que são os Estados Unidos. A tal “atenção à realidade do mundo” deveria levar os ucranianos a aceitarem a “neutralização da Ucrânia, algum tipo de acomodação para a região do Dombass, com um elevado nível de autonomia, talvez no contexto de alguma estrutura federal da Ucrânia, reconhecendo-se que, goste-se ou não, a Crimeia não está em cima da mesa”. O realismo manifesta-se aqui no seu máximo esplendor. Diz o Sr. Noam que podemos não gostar de furacões, mas o problema não se resolve decretando que não reconhecemos a existência de furacões. Proclamações heróicas sobre os furacões não nos levam a lado nenhum. Moral da história: é preciso capitular face aos russos.

Apreciar-se-á a mudança de registo quando se passa da condenação incondicional dos Estados Unidos, que não conhece excepções, ao realismo extremo que sanciona a fatalidade da invasão russa. O realismo é, obviamente, uma consequência da condenação sistemática. Sugerir a capitulação da Ucrânia é uma maneira de explorar aquilo que aparece como uma possibilidade de pôr em cheque a suposta causalidade única dos Estados Unidos. A invasão russa só pode assim ter um lado bom, por mais condenável que o autor a diga ser: o representar uma reacção contra a barbárie global dos Estados Unidos, mesmo que haja o risco de, falhando a solução realista que propõe, os Estados Unidos saírem mais uma vez vencedores.

Podemos agora voltar à questão do filtro que o probo e brilhante Dr. Chomsky absorve para se transformar no terrível Sr. Noam. Quanto a mim, não há grandes dúvidas sobre a sua natureza: é a própria exigência de sistematicidade. O Dr. Chomsky procura pensar a política com o mesmo tipo de sistematicidade que usa para pensar a linguagem, com a ambição de fazer sentido de tudo. Estou convencido, de resto, que seria possível estabelecer analogias esclarecedoras entre as operações que a gramática generativa descreve e o processo de que Chomsky se serve para detectar o modo como a causalidade única dos Estados Unidos se manifesta no mundo. Acontece, no entanto, que a compreensão da vida política não é receptiva a tal sistematicidade. O que no primeiro caso é uma virtude teórica é, no segundo, algo que raia o delírio paranóico. Ao tentar exportar a sistematicidade que usa na linguística para o domínio da política, o Dr. Chomsky transforma-se no Sr. Noam.

No fundo, Chomsky comete o pecado de não ter em conta uma velha lição de Aristóteles. Aristóteles escreve que não se pode exigir o mesmo tipo de exactidão – a palavra grega que usa é: akribeia – a todas as disciplinas. A física não possui a mesma akribeia da matemática e a ética e a política não são susceptíveis de uma akribeia comparável à da física. Pretender que há uma akribeia idêntica para todas as disciplinas, lembra ainda Aristóteles, é sinal de ignorância. Em nome da “responsabilidade dos intelectuais”, o grande linguista concebe, apoiado nesta ignorância, um delírio que, sendo impecavelmente coerente (a paranóia apresenta uma coerência indisputável), possui mais afinidades com as Memórias de um nevropata, de Daniel-Paul Schreber, do que com qualquer livro que vise realmente esclarecer-nos sobre a política mundial.

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