Quando era pequena passávamos a Páscoa, em família, na Beira Alta. A viagem levava dois dias, com direito a dormida no Luso ou em Seia, para chegar a tempo de ver Judas a arder na praça e celebrar a ressurreição de Cristo. Num Peugeot 504, com três pessoas atrás a enjoar nas curvas, lembro-me de ser frequente passarmos por carros funerários. A minha mãe benzia-se e o meu pai desligava o rádio que mantinha em silêncio até os ultrapassarmos. Era um ritual suave, sem ruído, repetido ao longo dos anos que, para mim, era feito de respeito pela dor da perda e pelo sofrimento de alguém desconhecido mas como nós.

A morte de George Floyd foi filmada. Vimo-lo a pedir ajuda e a morrer. Ali, à frente de todos, a sufocar. Um horror. Aquele momento atempadamente filmado permitiu que testemunhássemos, à escala global, a violência, a brutalidade e a total ausência de empatia pelo sofrimento de alguém. O negro. O estranho. O desconhecido que não é como nós. O outro. Dois metros de homem, músculos e perigo, que é preciso algemar e imobilizar sem piedade. Com o peso do corpo sobre um joelho e o joelho sobre o pescoço. Um joelho, treinado, mata. Foi o que vimos. E continuamos a ver. Repetidamente. À hora do almoço, ao jantar, nos noticiários intermédios, em casa, na rua, entre um prato de caracóis e uma imperial, na televisão suspensa na parede da tasca em canal aberto. Não se consegue desligar o som das gargalhadas, do entusiasmo de quem sai de casa ao fim de dois meses, do barulho dos pratos, enquanto ele diz, I can’t breathe, e agoniza outra vez, e outra, várias vezes ao dia. Sem que nos apercebamos, o horror inicial já não vem com arrepios. Sem que nos apercebamos, a retina habitua-se à imagem. É assim que se tratam fobias, é assim que se banaliza o mal. Integrando-o, dando-lhe espaço, justificando-o. Dessensibilizando-nos. Um dia, o joelho deixa de ser polícia, o corpo imobilizado deixa de ser Floyd. São fragmentos despersonalizados. E nós a assistir. Deixa de se ver a morte, deixa de se ver o joelho, deixa de se ver a dor, habituamo-nos. Aconteceu durante o Terceiro Reich. Acontece no Mediterrâneo – já nem vemos o menino morto na praia, esse, perante o qual o mundo inteiro se levantou em incrédulo horror.

Somos capazes das maiores atrocidades e não nos falta nem criatividade nem empenho. Qualquer museu da tortura o confirma.

O poder da imagem – esse pequeno filme que permitiu exigir justiça perante a atrocidade -, banaliza-se. Aparece colado às imagens das manifestações, intercalando-as, para nos lembrar a origem. Nós sabemos. E se não soubéssemos, talvez fossemos à procura. Como vamos a Auschwitz, existência edificada do mal, em reverente silêncio.

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