Foi Francisco Assis que o viu primeiro, e eu diria que por intuição e não por qualquer tipo de informação privilegiada a que nós, na gíria do meio, chamaríamos dica. Podendo, Rui Rio governará com o apoio de André Ventura. Assis escreveu-o em fevereiro, no Público, num artigo intitulado “Uma ‘geringonça’ de direita“, munido da capacidade de análise que o distingue –  e que também transpareceu na entrevista que concedeu a Maria João Avillez no passado fim-de-semana –, para concluir, em jeito de aviso: “Claro que no dia, se esse dia surgir, em que Rui Rio se dispuser a governar com o apoio parlamentar de um partido como o Chega uma parte significativa da esquerda rasgará as vestes acusando-o de aceitar ficar dependente da extrema-direita. Só que nessa altura Rui Rio lembrará que em circunstâncias análogas António Costa não hesitou em negociar com um partido que nunca condenou o totalitarismo soviético, que continua a falar da “alegada queda do Muro de Berlim” e que não esconde alguma simpatia pelo regime norte-coreano.”

Num país em que o comentário político se resume, frequentemente, a cuspidelas e presunções, a clarividência de Assis, há já meio ano, não só advertindo a sua área e o seu partido, como vendo além do que a própria direita via em si mesma, era um tanto avassaladora, para não falar na razão que aqueles que se opuseram à “geringonça” em 2015 acabaram por receber do tempo, na medida em que a normalização de alianças com forças populistas não afetou, afinal, apenas os equilíbrios de poder à esquerda, abrindo igualmente novas estradas à direita.

Um semestre depois, independentemente do favorecimento sentimental que se atribua à eventual solução, há algo no ar que a anuncia. Como confirmou João Miguel Tavares, também no Público, esta semana, a estratégia de Rio passa por aproveitar essas alterações informais no nosso sistema político e, no fundo, reciprocar a “geringonça” de Costa com uma sua “geringonça”. “A sua aposta é num governo liderado pelo PSD com André Ventura à pendura em 2023, ou mesmo um pouco antes disso, se a situação económica se agravar enormemente e o governo não aguentar”, suspeita o colunista. Um dia mais tarde, o próprio Rio admitiria dialogar com o Chega, na Grande Entrevista da RTP. Entre os mulás da República, conversações oficiosas entre Ventura e Rio são dadas como certas há meses. No final do último inverno, o jornalista Miguel Santos Carrapatoso dedicou uma capa da revista do Expresso à hipótese de um futuro PSD/Chega, que contava com declarações da direção social-democrata, não desmentindo a possibilidade.

Acontecendo, meu caro leitor, será dos momentos mais hilariantes da história recente da nossa vida política. De pipocas pré-encomendadas, explico porquê. Desde que Rui Rio foi eleito presidente do PSD, no início de 2017, que o comentariado instalado e reinante se deixou embalar na cantiga do ex-presidente da Câmara do Porto. Salivavam pelas suas afirmações de “centro-esquerdismo”, pelos seus remoques contra o Governo de Passos Coelho, pelos seus mimos e deferências a António Costa, pela sua postura de “homem sério” e “incorruptível”. Que irónico será, caso aconteça, que Rio se torne Primeiro-Ministro, depois de todo o carnaval de “recentrar o partido” e de “verdadeira social-democracia”, mas ao lado do Chega, que aqueles que o louvaram tanto odeiam. E que irónico seria, depois de terem vilipendiado Passos Coelho por alegado radicalismo, verem o homem que aplaudiram, por contraste, chegar ao poder com os votos do partido que consideram “fascista”.

Nestes anos, a esquerda comentadora, com o simplismo que a caracteriza, excitou-se com as tiradas anti-liberais de Rio, com a sua hostilidade à direita e com a suavidade com que este foi interagindo com o Partido Socialista. A direita militante, sem líder e sem vitórias, olha para Rio com o desprezo com que é olhada, incapaz de reconhecer a sua tática, ou de ver para lá dos diferendos ideológicos que os separam. Nem um lado, nem o outro, até agora, se apercebeu do que se está a passar. E o resultado, previsivelmente, desagradará a ambos. Conseguindo-o, será um manguito de Rui Rio aos que o elogiaram por não o tomarem como ameaça e, de igual modo, aos que o menosprezaram por o presumirem incompetente. E o país, o que diria? Sinceramente, não sei. Mas ainda vamos ver o PS lutar por um debate quinzenal.

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