Um dos privilégio de trabalhar com um americano é que a pessoa deixa de julgar que o mundo pensa em português como nós pensamos. Vou tentar explicar: quanto menos um português lida com alguém culturalmente diferente dele, mais alimenta ilusões típicas da condição de Génesis 10. Qual é a condição de Génesis 10? É aquela antes de Génesis 11, quando Deus ainda não nos tinha dividido por línguas ao frustrar a construção da Torre de Babel. A condição de Génesis 10 faz-nos tomar Portugal como o mundo inteiro e ignorar que o que aqui vivemos pode ser diferente do que os outros vivem fora daqui.

Não sou grande viajante mas do que tenho visto fora das nossas fronteiras concluo: um português que sai redime-se, um que fica só se estraga mais ainda. E o estrago do português que fica vê-se também nessa conclusão precipitada de que a pequena parte que nos pertence, o nosso país, serve de todo, do mundo muito além de nós que existe. Um português que fica é, ironicamente, um operário resoluto na convicção de que a obra da Torre de Babel não só vai chegar ao fim, como vai também envergar orgulhosamente a bandeira da nossa pátria no seu cocuruto. Um português que fica é uma pessoa que se esforça por ignorar que fora da nossa língua há uma infinidade de gente.

Trabalho com um americano. A Igreja da Lapa (a Segunda Igreja Evangélica Baptista de Lisboa) tem dois pastores além de mim — um deles é americano. É o Mark. Se quiser ser rigoroso, tenho de reconhecer que o Mark não é o americano típico (há um americano típico? Vamos aceitar a ideia de que sim). Já viveu a maior parte dos seus anos fora dos Estados Unidos, entre o Quénia, a Alemanha e a Coreia do Sul. O Mark e a sua família chegaram a Lisboa há 15 anos e já têm nacionalidade portuguesa. O Mark não é mesmo o americano típico mas ainda é suficientemente americano. Por trabalharmos juntos, o Mark mostra-me que o facto de eu ser português e em português pensar tem muito que se lhe diga.

Diariamente sou recordado de que viver no mundo de Génesis 11 também pode ter um aspecto positivo: há problemas aqui que por vezes estão mais na cabeça dos portugueses do que no mundo fora dessa cabeça. Aliás, iria até mais longe: um problema distintamente português passa precisamente pelo nosso fascínio por eles. Certamente a actividade de encontrar problemas não é exclusivamente portuguesa, mas duvido que haja gente muito mais ilustre do que a nossa na tarefa de encontrá-los. Por isso, e em jeito de teoria simplificadora, sempre disse ao Mark que em Portugal a pessoa inteligente não é a que descobre soluções para os problemas, mas a pessoa que descobre problemas para as soluções. Ao que o Mark me responde com a atitude graciosa de querer aprender com os portugueses, alertando também para o facto de existirem outros professores além de nós.

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Descobrir soluções para os problemas é típico de gente mais historicamente inexperiente, achamos nós os portugueses, parte do grupo dos velhos do mundo. Americanos adoram soluções porque ainda levam pouco tempo disto de andar por cá, dita a nossa experiência vetusta e cínica. O Henry Kissinger admitiu algo parecido numa entrevista em 2012, quando confessou que “the American tendency is to wait for a problem to arise and then to overwhelm it with resources or with some pragmatic answers” (“a tendência americana é esperar por um problema e depois atulhá-lo de recursos ou respostas pragmáticas”). Já nós, os testados pela história, desconfiamos de soluções porque a realidade não se dá a luxos desses (desenvolvi um pouco mais este ponto no livro “Arame Farpado no Paraíso”—comprem-no online uma vez que nenhuma editora portuguesa acreditou na solução de o distribuir!).

Mas a nossa obsessão pela inteligência que é descobrir problemas para as soluções, em vez de descobrir soluções para os problemas, tem um preço. Nessa atitude, que é também uma obstinação, ignoramos um mundo que pode ser mais do que a valiosa e dolorosa experiência de aprender com o nosso sofrimento. Podemos estar seguros de que os problemas desta vida são muitos e incontornáveis. Mas que esta vida se resume aos seus muitos problemas talvez seja um credo que forçamos ao mundo, nós portugueses tão constantemente magoados com ele. Nesse sentido, achar que inteligente é descobrir problemas novos para quem sugere soluções, é julgar que depois da Torre de Babel ter dado para o torto todos saíram da obra frustrada a falar português.

Daí que haja uma bela e esperançosa ironia: é pelo facto de não podermos esperar uma harmonia entre pessoas que são tão diferentes, falando idiomas distintos, que também não podemos tomar como perfeita a nossa enérgica capacidade de encontrar defeitos. Há defeitos que temos cá dentro que não existem lá fora e vamos chegar a essa conclusão através de uma língua estrangeira. Mais ainda: o que nos é estranho será usado para tantas vezes reconhecermos que, para nosso escândalo, podem existir soluções para os nossos problemas. A Torre de Babel aumentou a confusão entre nós, sem dúvida. Mas com o Mark tenho aprendido que há muita, muita terra além da sombra que ela projecta.