Já estamos habituadas. A culpa é sempre nossa. Um homem estupra uma mulher: culpa dela, que vestiu a “roupa errada” e estava na rua num “horário inadequado”. Um homem trai sua mulher: culpa dela, que não se cuidou o bastante para mantê-lo interessado. Um pai abandona os filhos: culpa da mãe, que não escolheu um bom pai para as crianças. É assim que funciona o adorável inconsciente coletivo da sociedade patriarcal.

Mas, por mais que eu estude questões de gênero há anos e já tenha visto muitos tipos de assombração, parece que o mundo nunca perde a capacidade de nos surpreender nesse assunto. Como sabemos, há alguns dias o príncipe Harry e sua mulher Meghan Markle anunciaram sua decisão de renunciar aos deveres reais a eles atribuídos como membros da família real britânica para tornarem-se financeiramente independentes, passando a viver entre o Reino Unido e a América do Norte.

Honestamente, esse nem é um assunto que me desperte um interesse particular, mas dadas as proporções que a coisa tomou, vale a pena olharmos para a questão com cuidado. Comecemos com algumas perguntas bastante óbvias: qual dos dois do casal é membro nato da família real britânica? Qual dos membros do casal está na linha de sucessão da coroa? Qual dos membros tem nas mãos o poder de tomar essa decisão de afastamento?

A resposta para todas as perguntas é “Harry”. Mas o fenômeno ganhou o nome popular de “Megxit” — adotado inclusive por jornais e emissoras de televisão. E não foi apenas o nome: todas as pessoas que tomaram este fato como uma ofensa à realeza britânica ou à própria rainha, não pensaram duas vezes antes de creditar a “culpa” da decisão a Meghan, colocando Harry numa posição quase análoga à de vítima.

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A caricata figura da mulher que “arranca” o marido do seio de sua família, “obrigando-o” a afastar-se dos seus familiares para passar a viver “a vida dela”, surge mais uma vez na história. O curioso é que os homens — sempre tão aptos a ocupar posições importantes em governos, empresas e negócios — de repente são colocados em uma posição extremamente vulnerável, como se fossem passíveis de ser completamente controlados por suas “terríveis” mulheres.

Numa entrevista passada, Harry afirmou “perdi minha mãe e agora vejo minha esposa sendo vítima das mesmas forças poderosas”. Num documentário, Harry também menciona a necessidade de cuidados constantes com sua própria saúde mental. Ou seja, o príncipe aponta algumas razões que levam-no a não querer viver mais nessa dinâmica. Mas não adianta. A responsabilidade pela decisão é sempre atribuída a Meghan.

Confesso que não entendo o que leva as pessoas a se interessarem tanto por esse assunto. Mas entendo — e respeito — perfeitamente a decisão de uma família para mudar de estilo de vida, sobretudo após o nascimento de um filho, independentemente de que família seja essa. Mas, como sempre, as pessoas gostam de procurar um culpado — mesmo quando o fator “culpa” nem faz sentido. E sempre que houver uma mulher na história, sabemos perfeitamente sobre quem a culpa recairá.