O ano de 2020 terá certamente poucas coisas boas para recordar. No entanto, os livros lidos ao longo deste ano em que o vírus obrigou o mundo a estar em casa ficarão na memória. Este ano li mais do que o costume, não necessariamente por causa da pandemia – até porque, quem me conhece, sabe que já estou em semi-confinamento há anos – mas porque tomei, finalmente, a decisão sensata de eliminar as minhas contas nas redes sociais. Em Março, nas primeiras semanas de confinamento, o nível de insulto e debate sobre a pandemia nas redes atingiu o paroxismo, levando-me a abandoná-las de vez. O balanço? Não poderia ser mais positivo. Quaisquer benefícios profissionais da presença nas redes, e existem sem dúvida, são claramente ultrapassados pela higiene mental de não estar exposto continuadamente ao bas-fond da sociedade. Esta crónica é a minha última publicação no Observador antes do Natal. Como não pode haver Natal sem livros nos presentes, deixo aqui uma lista dos livros dos quais tirei mais prazer em 2020.

James Wood: Selected Essays, 1997-2019. Uma recolha dos melhores ensaios de James Wood sobre literatura, onde não faltam os temas clássicos que permeiam toda a sua obra, mesmo quando subliminarmente: o problema da Teodiceia, a importância da narrativa limpa e sem ranço retórico, o viver entre dois países separados por um oceano e a mesma língua. Tive o privilégio de ser aluno de Wood durante 3 semestres em Harvard e, ao ler estes ensaios, parece que consigo ouvir a sua voz a dizer no final da aula: “we only have ten minutes left, so why don’t we just read for pleasure?”.

Mónica Baldaque: Sapatos de Corda – Agustina. A filha de Agustina Bessa Luís entrega-nos um documento maravilhoso onde podemos olhar para a frincha entreaberta da intimidade da escritora, que, ao longo de décadas, apesar de estar no espaço público, foi sempre reservada sobre a sua vida. O livro é um pouco desigual. Por vezes, a figura de Baldaque sobressai em demasia, como quando fala sobre as venturas e desventuras na museologia Portuguesa, e é-nos dito muito pouco sobre o papel de Alberto Luís na obra de Agustina. De qualquer forma, altamente recomendável!

Joaquim Nabuco: A Minha Formação. Em 2000, Caetano Veloso fez um disco chamado Noites do Norte, inspirado na obra de Nabuco, um dos deputados que lutou no Brasil pelo abolicionismo no século XIX. Apesar de ter ouvido o disco dezenas (centenas?) de vezes ao longo das últimas duas décadas, nunca tinha tido oportunidade/vontade de ler a obra maior de Nabuco. A edição Portuguesa é de 2015, na colecção da Glaciar, apoiada pela Gulbenkian. Confesso que a primeira parte do livro foi uma enorme desilusão. Nesta parte, Nabuco descreve longamente o seu deslumbramento (vagamente saloio) com Inglaterra, Bagehot e as instituições do parlamentarismo, como se estas surgissem de forma natural em cada país e não fossem endógenas às escolhas que as elites fazem. Enquanto lia esta parte percebi, finalmente, o motivo pelo qual João Pereira Coutinho prefaciou o livro, pormenor que não tinha conseguido perceber anteriormente. No entanto, a perseverança é necessária! O último terço do livro, na qual Nabuco descreve a sua infância e a sua condição de filho de um dono de escravos, o seu despertar para o problema da escravatura e o seu trabalho legislativo para pôr fim a tal abjecção, é profundamente tocante e muito bem escrito.

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Helen Garner: The Spare Room. Em 2006, Helen Garner, escritora Australiana, escreveu esta obra singular, na qual descreve a relação de duas amigas de longa data, quando uma delas, doente com cancro, pede à outra para a receber em sua casa enquanto ela faz tratamentos em Melbourne. Uma obra de autoficção onde está muita coisa a acontecer, apesar da (aparente) simplicidade.

Hadley Freeman: House of Glass — The story and secrets of a Twentieth Century Jewish family. Talvez o livro que mais prazer me deu este ano. Um livro de não-ficção sobre uma família judaica, de origem Polaca, que foge da sua terra natal na Galícia e dos pogroms dos anos 20 para Paris. Julgando-se em segurança em França, os membros da família subestimam a ameaça Nazi à comunidade judaica em França no final dos anos 30, acabando por ter sortes bastante diferentes.

Annie Ernaux: Os Anos. A história de França e de um certa geração contada num misto de história da vida privada misturada com História maior do país. Passando pelos anos do pós-Guerra, nos quais esta ainda dominava os almoços familiares de Domingo, o Maio de 68, a eleição de Mitterrand em 1981 e os auspícios de tomada de poder dos derrotados de Maio, e terminando no dealbar do novo milénio. O mais interessante em Ernaux, e na sua geração, de resto, é a ausência total de noção do seu próprio privilégio. Ao longo do livro, a autora não consegue colocar os privilégios da sua geração em perspectiva com as gerações anteriores e posteriores. Um documento notável!

Dorthe Nors: Wild Swims – Stories. Uma escritora Dinamarquesa que tem uma mão simplesmente fantástica para o conto. Não sendo minimalista, não há aqui nada mais do que o necessário. Passados em várias latitudes, os contos deste volume são uma óptima porta de entrada para o universo de Nors. A manter debaixo de olho.

Magda Szabó – A Balada de Iza. Supostamente o melhor livro de Szabó, escritora maior da literatura Húngara, é A Porta. Confesso que já tentei começar A Porta duas vezes,  mas, em ambas as vezes, parei ao fim de algumas páginas. Provavelmente, ainda não tive sorte de ler o livro no momento certo. Li com muito prazer este Balada de Iza. O livro é algo bizarro e confesso que cheguei ao fim a querer mais, como se houvesse coisas por dizer acerca de Iza, médica que traz a mãe para viver com ela para Budapeste Comunista depois da morte do pai. Fiquei sem saber (ou perceber?) se Iza é uma personagem com vida política, ou, pelo contrário, se a proscrição do pai do cargo de juiz por motivos políticos na sua infância a tornou uma niilista cínica. A necessitar de reler para procurar a resposta ao puzzle. 

Claire Messud – Kant’s Little Prussian Head and Other Reasons Why I Write: An Authobriography through Essays. Não consigo achar Claire Messud uma escritora maior. No entanto, confesso que gostei desta “autobiografia”. A primeira parte é genial, simplesmente. Messud tem, pelo menos, dois ensaios de antologia sobre a família, a vida dos pais, e a morte do pai. Ajuda o facto do pai ser um Judeu Francês, que trabalhou para o MNE Francês antes, durante e depois da Guerra, com uma história riquíssima. A indecisão sobre a ida a Beirut enquanto o pai morria no Connecticut é um momento maior. A segunda parte do livro era dispensável.

Robert Arlt: Águas Fortes Portenhas. Gostei muito de ler a maior parte dos contos de Arlt, escritor Argentino, que consegue construir personagens muito interessantes. Não sendo, exactamente, um leitor de literatura Latino Americana, com excepção do Brasil, passei momentos muito interessantes, alguns até divertidos, a ler a colectânea editada pela Ponto de Exclamação.

Zadie Smith: Intimations – Six Essays e Fang Fang: Wuhan Diary – Dispatches from a Quarantined City. A literatura sobre a pandemia explodirá nos próximos anos. Até agora li apenas estes dois livros, com perspectivas muito diferentes. Smith em Nova Iorque descreve a interacção com os vizinhos e as lojas numa cidade que rapidamente se esvazia. Fang Fang escreveu este diário de Wuhan nos momentos mais negros da pandemia na China. Neste livro percebe-se como um regime totalitário Comunista (perdão pelo pleonasmo) tem instrumentos muito mais poderosos do que as democracias liberais para coartar a liberdade (e o vírus).

Vanessa Spingora: Consentimento. A sociedade Francesa tem uma abordagem, no mínimo, sui generis à vida sexual da elite política, intelectual e cultural. Ao contrário dos Americanos, puritanos até ao tutano, durante décadas, em França foi visto com total normalidade não só a promiscuidade, mas o abuso sexual, desde que feitos em nome da arte, claro. No entanto, o ambiente está a mudar. O livro de Spingora não seria possível há uns anos, antes de movimentos como o MeToo. Nele, a autora narra na primeira pessoa, a sua relação com o escritor Gabriel Matzneff, quando tinha 13 anos e este último mais de 50. O livro é bastante chocante pela crueza com que a autora narra os acontecimentos. Cito “Quando anuncio à minha mãe que deixei o G., primeiro ela fica sem voz, depois diz-me, com ar entristecido: ‘Coitado, mas tens a certeza? Ele adora-te’”.

Feliz Natal!