Todas as crianças nascem livres e iguais. Em dignidade e em direitos. Mas o lugar onde nascem, as pessoas com quem crescem e as escolas que frequentam leva a que as condições de igualdade que tenham não deixem de ser condicionadas e comprometidas com diferenças que fazem com que — muito depressa, e desde muito cedo — aquilo que as separa se aprofunde. E a escola, por mais que esbata e “corrija” algumas das diferenças com que as crianças  se distanciam em oportunidades e em direitos, “legitima” (e acentua, até), muitas vezes, contra a vontade de todos, as desigualdades que as afastam umas das outras e que, em termos sociais, as parece ir separando. Para sempre.

Todas as crianças nascem livres e iguais. Mas é por reconhecerem a forma como, desde muito cedo, nas suas vidas, as dificuldades de acesso a uma educação versátil e equilibrada comprometeu, de forma irreparável, muitas das oportunidades que desejaram para si, que muitos pais atribuem à escola a função — quase única — de correcção de desigualdades sociais, aceitando hipotecar muitas ocasiões dos seus filhos serem só crianças, colocando sobre ela quase todas as expectativas de que eles possam vir a ter um futuro melhor. Até porque, muitos deles, para conseguirem dar-lhes as condições para que tenham na escola “a oportunidade de uma vida”, se dividem por vários trabalhos, num esforço grande e sob condições tão exigentes que, por mais que não queiram, a forma como vivem e os riscos que são levados a correr por causa disso trazem outras limitações que “comprometem” o seu crescimento.

Mas se a educação obrigatória, por mais anos, trouxe as maiores oportunidades de democracia social que alguma vez a Humanidade já conheceu, o mundo — que tem nas novas tecnologias “varandas digitais”, cheias de filtros, com que tantas pessoas iguais a nós exibem pedaços da sua vida, desejosos e invejáveis, com que parecem ter uma vida feliz e fácil e cheia de episódios memoráveis — por mais que, hoje, seja mais democrático e inclusivo, ainda separa as pessoas. E isso aguça, inevitavelmente, as injustiças de que se sentem vítimas. Sempre que as diferenças se perpetuam em desigualdades transformam-se em preconceitos. E os preconceitos em muros que nos separam. Não é, portanto, unicamente, o género, a cor da pele, a religião ou o lugar de onde se vem que nos separam. É isso; sim. E a convicção de que, embora todas as crianças nasçam atentas, inteligentes e sensíveis, o futuro que temos para lhes dar parece, vezes demais, não vir a depender só delas. Como se a democracia de oportunidades fosse, muitas vezes, um caso de “publicidade enganosa”. Condicionada por injustiças e preconceitos.

Eu acho que estamos a viver muitas mudanças, grandes, ao mesmo tempo, que fazem do nosso tempo um “mundo novo”. Um mundo onde não pode pender, sobretudo, para a escola os argumentos que evocamos para o descrevermos mais justo. Veja-se, por exemplo, a propósito da quarentena, que a meio do terceiro período de aulas, mais de metade dos professores ainda não tinha conseguido contactar todos os seus alunos. E que 1 em cada 5 estudantes não tem computador em casa. A transição para uma escola digital não é, por inerência, sinónimo de uma escola mais acessível, mais aberta e mais democrática. Muito longe disso. Mas mais importante que isso, hoje, precisa-se de uma política da família. Precisa-se de uma política para a infância. Precisa-se de uma política para a escola. E precisa-se de uma política para as cidades.

O mundo é, hoje, mais justo. Mas está longe de ser tão democrático como a ideia de uma educação obrigatória, gratuita e para todos nos levaria a supor. É claro que, também eu, me alarmo quando vejo uma “onda” através da qual “corrigir a história” passa por cortar a cabeça a estátuas, por vandalizá-las ou por derrubá-las. (Mesmo que algumas delas pudessem, porventura, não merecer ser estátuas, por exemplo.) “Corrigir” a história olhando, unicamente, para trás, será, no mínimo, estéril. Sobretudo se não nos dermos a oportunidade de escolher o futuro que queremos para as crianças que temos aos nossos cuidados. E que — num mundo em crise ambiental, em crise social, em crise sanitária e em crise económica — tem de merecer escolhas (políticas, inevitavelmente) que, com a mais-valia da diversidade e de todos os partidos, se traduzam em “pactos de regime” claros daquilo que se quer para as crianças, para as famílias e para a escola. Como se fosse um “ministério do futuro”. Em nome das crianças. Escolhendo, hoje, os fundamentos para que o seu futuro seja melhor. Para que todas as crianças nasçam livres e iguais, em dignidade e em direitos, e para que tenham argumentos e instrumentos para que assim permaneçam. Para sempre!

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