Não se regressa à normalidade. A normalidade é o presente repetido a dois tempos. Mesmo que não vá ficar tudo bem, salvou-nos já o pessimismo propagado por todas as partes: tudo será melhor agora, depois de termos antevisto o pior.

Uma antiga canção medieval portuguesa ilustra bem a nossa condição:

“Convén-me viver
trist’ e mui penado,
pois desamparado
vivo todavia”
Garci Fernández de Gerena

A atitude aqui manifestada contrasta com aquele optimismo insuportável que se vinha entranhando por todos os cantos. O homem ocidental carrega uma herança histórica por vezes filosófica, outras vezes religiosa, de um profundo aguardar utópico. A noção de esperança é, aliás, expectável nas apreciações do comum homem democrático. Estamos neste momento a colher os benignos frutos de um fortificado pessimismo. E é esta mesma nuvem escurecida que nos impede de antevermos um futuro próximo envolto em prosperidade, protegendo-nos ao limitar a perniciosa esperança sem freio.

Temos variegados exemplos no resto do mundo que contrastam com o caminho enunciado, não carecendo de enunciação: os seus resultados estão à vista. E há mesmo pontos positivos nesta nova normalidade, ora veja-se: é possível observar a infinidade de padrões do mais recente acessório de vestuário facial, bem como as tão imaginativas formas de protecção: do queixo às orelhas, do bolso da camisa a substituto de terço naquele monopólio que é o espelho interior do automóvel. Há mais espaço, e em momento algum estiveram tão limpos os locais sociais, como o próprio público que os frequenta.

Por entre muita leviandade, sofremos, é certo. É este mesmo sofrimento, esta dor, o grande estímulo por um ardor de viver. Tal qual afirmou Schopenhauer, vários antes dele, e menos depois dele, só encontramos positividade na dor. Só a dor faz ressuscitar a tão banal, a tão desprezada normalidade, a partir do desejo. Nada será como dantes. Mas nunca coisa alguma pôde ser como de antes. Somos sempre o agora, em busca de um depois: mais livre, mais livre de dor.

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