Está a surgir um mito na política portuguesa que afirma a unidade da esquerda sobre a candidatura presidencial de António Guterres. A esquerda, ou pelo menos o Partido Socialista, terá um candidato natural – Guterres – e a direita está dividida entre vários candidatos possíveis, desde Rebelo de Sousa a Santana Lopes e Rui Rio. Esta tese dá jeito, sobretudo ao PS, mas está longe da verdade. Notem a frase deliciosa da Mário Soares (para quem gosta da análise política, Soares continua a ser uma fonte inesgotável), “Guterres seria um óptimo candidato presidencial, tal como seria também um excelente Secretário Geral das Nações Unidas.” Tradução: Soares neste momento não quer atacar Guterres, mas gostaria muito de o ver de novo num exílio institucional, desta vez em Nova Iorque. Em Belém, ficará melhor um “socialista, laico e republicano.” A “unidade do PS” à volta de Guterres começa a manifestar-se cedo.

Completamente partido entre os dois Antónios candidatos a líderes, o PS necessita de transmitir a imagem de unidade à volta do terceiro António. Claro que não passa de uma ficção, como o tempo se encarregará de demonstrar. Basta recordar um pouco os tempos de Guterres como PM, o modo como saiu do governo e da liderança do seu partido e no que o PS se transformou desde então. Podemos começar com as questões de sociedade como o aborto ou o casamento entre homossexuais.

Julgo que todos se recordam de como a posição do PM Guterres durante o referendo sobre o aborto foi contrária à maioria do seu partido. E se alguma coisa aconteceu desde então foi que o PS se tornou ainda mais radical em relação às questões sociais, estando muito próximo do Bloco de Esquerda. Quanto a Guterres, continua a ser, nessas questões, um democrata-cristão, bem mais conservador do que muita gente de direita, quer do PSD como do CDS. Conheço muitos “neo-liberais” mais progressistas do que Guterres. Nessas questões, no essencial, Guterres pensa como Cavaco. Por exemplo, Santana Lopes é bem mais liberal socialmente do que Guterres. Estou desejoso de ver o apoio das alas radicais do PS ao “democrata-cristão” Guterres.

Passemos agora para a economia e para as finanças públicas. Aqui gostaria de recordar Guterres, um dos Pais da “Agenda de Lisboa” (o outro Pai foi um certo Tony Blair) e um dos percursores da “Terceira Via” social-democrata, como a resposta dos socialistas ao sucesso “neo-liberal” e ao triunfo do capitalismo na luta contra o marxismo soviético (o outro percursor foi um tal Tony Blair). A Agenda de Lisboa não era apenas sobre o crescimento económico, pressuponha igualmente finanças públicas equilibradas. E foi Guterres que liderou o nosso país na entrada no Euro. Sabe muito bem o que o Tratado de Maastricht diz sobre a dívida e o défice (o que de resto não é muito diferente do que diz o Pacto Orçamental).

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Se Guterres se candidatar, certamente que o(s) candidato(s) da direita e os apoiados pelo BE e pelo PCP não deixarão de lhe perguntar o que pensa sobre os compromissos europeus, como o Pacto Orçamental, sobre a renegociação da dívida, sobre a capacidade do Estado para fazer crescer a economia através de investimentos públicos. E mais importante, os portugueses vão querer ouvir as respostas a essas questões.

Após os sofrimentos impostos pela crise, duvido que os portugueses usem os seus votos como se fossem cheques em branco, e quem entender isso estará mais bem posicionado para vencer eleições. Mais uma vez, desconfio que o social-democrata da Terceira Via, economicamente, não pensa de um modo muito diferente do actual Presidente da República. E provavelmente não se afastará muito de Rebelo de Sousa ou de Rui Rio. Uma coisa é certa: está mais próximo dos sociais-democratas do que de muitos dos seus “camaradas” socialistas.

Há de resto um ponto interessante. As diferenças entre os possíveis candidatos da direita resultam de rivalidades e ambições pessoais. As diferenças entre Guterres e muitos socialistas são de natureza ideológica. São portanto mais profundas. Sei igualmente que muita gente de direita não se assusta nada com a ideia de Guterres em Belém (e há mesmo quem o prefira aos possíveis candidatos do PSD). E pelas pessoas de direita que me dizem isso, posso garantir-vos uma coisa. Não sei se Guterres será social-democrata ou democrata cristão. Mas tenho a certeza que não é socialista.