Um crítico literário conta a história de um oficial que ao entrar nos aposentos de um rei militar da Antiguidade o surpreendeu “absorto em divertimentos femininos.” O crítico queria desencorajar bisbilhotices sobre escritores, mas a tese pode ser alargada. As intrusões e as surpresas nos quartos de terceiros revelam muitas vezes que uma pessoa que imaginávamos ser assim era afinal assado; que alguém que pensávamos ter certas opiniões tinha afinal outras; e que alguém que não julgávamos capaz de fazer uma coisa afinal fez. A palavra ‘afinal’ costuma ser de mau presságio.

Estamos não obstante preparados para as discrepâncias; não nos passa pela cabeça que alguém seja exactamente como o vimos pela primeira vez. Aprendemos a reconhecer sinais de que as coisas não são o que parecem, e de que as pessoas ou as relações entre elas não são o que imaginamos. É a esse reconhecimento que chamamos o momento da verdade. Cada momento da verdade é depois integrado num novo raciocínio sobre pessoas, animais ou coisas; as conclusões desses raciocínios contradizem o que até aí achávamos que era o caso; indicam que mudámos de ideias.

Esses momentos podem ser de muitas espécies: um gesto que indica que duas pessoas que pensávamos que mal se conheciam afinal dormiam juntas há vários meses; o Sr. Água e o Sr. Azeite que uivam às quintas-feiras na televisão e que subitamente se tratam por ‘tu’; uma juíza a contar anedotas a um taxista; um professor de português a arranjar um relógio.

O momento da verdade é assunto de romances e de filosofia. Quase todos os romances bons falam de gente que percebe que duas coisas que não lhe tinha ocorrido relacionar afinal estão ligadas; que a mulher do brasileiro é afinal a irmã do herói. Um filósofo descreveu a surpresa de quem percebe que os dois astros a que costumava chamar ‘Estrela da Manhã’ e ‘Estrela da Tarde’ eram afinal o mesmo planeta. A todos, embora de modos diferentes, preocupa o momento da verdade.

No entanto, o facto de termos aprendido a reconhecer sinais e a mudar de ideias por causa deles não garante que não nos possamos enganar. Há casos em que percebemos que as nossas penúltimas ideias é que eram as verdadeiras. Nesses casos porém tivemos de ter uma ideia depois da última, isto é, um novo momento de verdade. São assim realmente as nossas antepenúltimas ideias que podem ser verdadeiras: as duas pessoas não se conheciam; o Sr. Água enganou-se ao tratar o Sr. Azeite por ‘tu’; a juíza estava a ensaiar um discurso a caminho de um jantar; e o professor estava a tentar impressionar um relojoeiro amigo. Chegamos nesses casos à conclusão de que aquilo a que durante algum tempo tínhamos chamado a verdade era afinal o resultado de um pesadelo característico: o de imaginar relações a mais.

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