“Rita,” lêem alguns de nós com interesse no dentista, “acusa Sofia de não deixar Bernardo em paz. Com lágrimas nos olhos, Sofia agarra-a pelo braço e leva-a ao quarto; mostra-lhe o berço; Rita vai-se embora a cavalo, agastada.”  Trata-se de um conhecido episódio de todas as telenovelas portuguesas.

Coisas têm sido escritas sobre o tópico; pergunta-se com perplexidade de crocodilo como pode haver quem siga diariamente interacções complexas entre civis filmadas a uma luz que, em casas ou jardins, lembra sempre a de uma cervejaria.   Não adianta no entanto exprimir incredulidade em relação a actos praticados alegremente por grandes quantidades de pessoas. Ninguém deixou nunca de ver uma única telenovela por causa de argumentos sociológicos ou políticos ou estéticos sobre os seus hábitos. Insultar os costumes da maioria é uma forma de loucura inútil.

O principal motivo, e aliás o principal motivo de interesse, numa telenovela portuguesa é o motivo do pequeno-almoço; o pequeno-almoço é observado estritamente por todas as famílias ricas. Da ementa faz parte um jarro com um contéudo translúcido côr de cera líquida, e um pão-de-ló numa torre em forma de abeto. Sendo as telenovelas directamente inspiradas na vida real, alguém pouco familiarizado com a dieta das famílias ricas pode por um momento imaginar que é isso que elas comem ao pequeno-almoço. Estou no entanto em posição de garantir, sendo eu próprio extraordinariamente rico, que nenhum de nós come pão-de-ló ou bebe cera líquida ao pequeno-almoço.

Naturalmente quem escreve as telenovelas não ignora esses factos. A questão é então a de saber a razão por que nesse particular escritores tão engenhosos mentem com desfaçatez continuada. Várias explicações têm sido propostas; servirá o batido de cera para indicar aos espectadores que uma dada família é rica (como uma alça caída faz adivinhar que alguém é dissoluto, ou uma bata que alguém é médico)? Ou será antes o pequeno-almoço uma ilustração de princípios universais do Nutricionismo (cera, ovos e açúcar) ou da Arquitectura (um bolo em equilíbrio num abeto)?   Nenhuma destas explicações me parece convincente.

A minha teoria é a seguinte: esses erros reiterados, sem qualquer correspondência com a realidade, que mancham cópias das nossas vidas de ricos que de outro modo seriam perfeitas, servem para nos lembrar de que as telenovelas são grande arte. Os escultores antigos adulteravam as proporções dos focinhos dos cavalos, não fosse alguém supor que dentro de uma escultura de mármore se escondesse um animal, vivo ou empalhado. Os autores contemporâneos, menos dados à escultura, incluem grandes quantidades de pão-de-ló no pequeno-almoço das telenovelas para, como faz sempre a melhor arte, evitar o risco de confusão entre comensais e seres humanos. Está assim explicado que não haja pão ao pequeno-almoço.

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