O drama dos jovens aprisionados numa gruta na Tailândia criou um verdadeiro tsunami de emoções. O Mundo inteiro segue os acontecimentos de Tham Luang, tornando os doze jovens e o seu treinador heróis instantâneos e globais.

O resgate dos oito primeiros foi recebido com júbilo. Aguarda-se o desfecho em relação aos restantes, medita-se e reza-se pela sorte dos jovens, espera-se que hoje, algures a meio do dia, tudo tenha terminado.

As reacções são extraordinárias, os memes e as fotos multiplicam-se. Há este extraordinário cartoon. E este: esqueçam o campeonato do Mundo de Futebol, eis a equipa campeã.

O Mundo unido em torno dos 13 de Tham Luang, eis o que nos devolve alguma fé na Humanidade. E torna-se inevitável lembrar a “Alegoria da Caverna” de Platão, uma das mais importantes e persistentes lições da Filosofia.

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Recordo-a brevemente: prisioneiros numa caverna vêem na parede imagens geradas por uma fogueira, sombras de pessoas que passam num caminho que a sua visão não alcança, cenas do dia-a-dia lá fora. Analisam-nas, comentam-nas, nomeiam-nas, sem nunca as verem como elas efectivamente são. Um dos prisioneiros consegue sair, conhece a realidade, os seres vivos, os animais. Regressa à caverna e conta o que viu, ameaçam-no, ninguém acredita nele.

Assim somos nós. O homem da caverna do VIIº livro da República de Platão é o homem vulgar. Eu, o leitor, todos nós. Como bonecos de plasticina, moldam-nos uma cultura e uma sociedade que nos transmitem informações, imagens, concepções distorcidas, gerando uma identidade à qual aderimos pela passagem do tempo, educação, rituais e tradições inventadas, baseada em interesses nossos que superam todos os outros, em agendas pessoais e alheias que determinam as nossas escolhas e conformam as preferências públicas a que aderimos.

Por que razão são os jovens de Tham Luang especiais?

Porque a sua realidade, uma realidade quase-trágica, é também simples, tão simples que não carece de explicações e revela-se real em todas as paredes de todas as cavernas do Mundo. Matéria de filme, o conhecimento adquirido sobre o que se passou não pode ser distorcido: doze crianças e um jovem perderam-se no dédalo das grutas de Tham Luang, entretanto submersas pela água das monções, viveram sem comer nove dias até serem encontrados e o seu salvamento teve, continua a ter, laivos de epopeia. O risco de vida sempre presente. O mistério da insondável profundeza das entranhas de uma terra estranha. O sorriso dos jovens, a fé inquebrantável na salvação.

Não há sombras que persistam. Estes jovens são os nossos jovens, os miúdos de todos os continentes e todas as eras, a esperança de um novo amanhecer para a espécie humana. Exagero, dirão. Não, exagero é o que acontece em geral, a indiferença perante o sofrimento alheio, o mal absoluto e banal sobre o qual escreveu Hannah Arendt. Exagero é a contemplação passiva das imagens mentirosas reflectidas na parede da gruta em que vivemos.

No caso da Tailândia, nós, os prisioneiros da caverna global, virámos a cabeça o suficiente para ver a realidade. Uma realidade em que o estoicismo e a coragem de alguns e as boas vontades de todo o lado fizeram do Mundo real, pelo tempo curto de alguns dias, um sítio melhor.

Quase nunca é assim. Cada vez mais só vemos o que nos convém, e convêm-nos as sombras que nos permitem acreditar naquilo que queremos. Naquilo que nos convém.

Como prisioneiros na caverna viramos os olhos ao que nos incomoda: com o mal dos outros podemos nós bem. Nos EUA, 1.300 crianças e adolescentes morreram anualmente por armas de fogo entre 2002 e 2014, revelou o Centers for Disease Control and Prevention. Vidas mortas na parede falsa de Platão. A Save the Children calculou que o assassinato ou mutilação de crianças cresceu 200% desde 2010. E morreram 1200, número aproximado, a tentar chegar à Europa entre 2014 e 2018 (dados da OIM).  E há ainda a desigualdade, o aumento exponencial dos perdedores da globalização, o envelhecimento populacional, as alterações climáticas que inundam as grutas onde nos escondemos do Mal dos outros.

Quer dizer que, por morrerem de morte violenta centenas de crianças e adolescentes, porque a miséria e a desigualdade não desaparecem do Planeta e o aquecimento global derrete os glaciares, não nos devemos regozijar com a salvação (espero) dos treze de Tham Luang? Pelo contrário, este é um episódio que nos devolve fé na nossa própria Humanidade, um exemplo de resiliência, a prova de como tudo pode ser melhor se a boa vontade posta em acto para salvar a melhor equipa de futebol do Mundo for uma constante diária.

Mas não é.

Sem querer incomodar os leitores com estas comparações, talvez não nos fizesse mal sentirmo-nos interpelados pela enorme hipocrisia de um Mundo ávido de emoções mediáticas, mas que só vê as imagens que quer. As que lhe convém.

Como os prisioneiros na caverna, limitamo-nos a fruir do que cai nas notícias, cada vez mais também nas redes sociais, e que nos encanta, emociona, irrita ou enoja, sem verdadeiro conhecimento. Como os prisioneiros de Platão.

Afinal, talvez também nós estejamos presos nas cavernas molhadas de Tham Luang.