Todo o processo de substituição da ministra demissionária foi estranho e sugestivo da falta de ideias e substância política para com o direito à proteção da saúde dos Portugueses. Se, como eu sempre disse e escrevi, o PS tem gente capaz de exercer as funções inerentes a ministro da Saúde, ainda mais quando a escolha foi repescar uma pessoa com experiência profissional e política na área, é difícil entender a decisão de prolongar a agonia da ministra cessante. Afinal, o homem estava logo ali, ao lado, à mão de semear. Mais estranho, para aprofundar o sentido cénico da estranheza, foi a humilhação pública a que votaram a Dra. Marta Temido quando a colocaram numa conferência de imprensa, a despedida da despedida, em que nem teve autorização para responder ao que lhe foi perguntado. Não era necessário.

Não quero acreditar que o Dr. Manuel Pizarro, a quem desejo as maiores felicidades para o exercício ministerial, tenha sido a enésima escolha de um saco onde nenhuma das bolas extraídas quis assumir os riscos inerentes a ser ministro de um desastre em curso. Nem acredito que tenha sido assim tão difícil convencer o investido a aceitar mais um degrau na escada política que pretende subir. No entanto, é justo dirigir-lhe um agradecimento por ter querido ser coerentemente político e ter assumido um dos deveres da profissão de político, a que exerce, o de governar. No fundo, por mais simpático que possa ser o exercício de eurodeputado, habitualmente desempenhado para matar o tempo de políticos sem espaço no seu país, um dos cargos que, pessoalmente, se fosse político eu gostaria de um dia exercer – por ser longe, calmo, bem remunerado e moderadamente exigente –, a verdade é que o novo ministro da saúde tem ambições políticas próprias, certamente legítimas, que só poderá realizar em sede de governo. Foi inteligente, é inteligente, o Dr. Manuel Pizarro, quando veste a pele de salvador da saúde, embora desconfie que não vai salvar coisa nenhuma. Um risco que pode passar de calculado a prejuízo incalculável.

No novíssimo governo de Sua Majestade o Rei do Reino Unido, a ministra da Saúde é vice-primeira ministra, a número dois do governo, o braço direito político da Sra. Truss. Em Portugal, desde que eu me lembro de olhar para a composição de governos, o ministro da Saúde está a meio da tabela, normalmente na segunda metade da hierarquia política do governo. Assim, não haverá Pizarro que nos valha.

Infelizmente, para lá dos elogios que apenas devem ser entendidos como reconhecimento do seu profissionalismo político – matéria que também falta a muitos dos nossos “políticos” – o Dr. Manuel Pizarro começa num contexto que o primeiro-ministro dificultou. Ter demorado tanto tempo a indicar um sucessor para a Dra. Marta Temido gerou dúvidas sobre a disponibilidade das “personalidades” para aceitarem o cargo, sendo o Dr. Pizarro o recurso que restava, permitiu a insuflação da eventual competência de outros putativos candidatos – com a consequente diminuição de apreço sobre a mestria do empossado –, retirou-lhe o período de graça a que deveria ter direito e sublinhou o caráter de ingovernabilidade de um ministério que, afinal, parece que só um devotado militante socialista, profissional de construção de carreira, pôde aceitar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Não alinho na tese, como escrevi acima, de que o Dr. Pizarro tenha sido a solução quando mais ninguém quis. Foi quem aceitou, não me interessa perder tempo a discutir quem recusou. Esses, naturalmente, não existem. Exceto o Dr. Fernando Araújo que vai pairar nas dúvidas… e se?  Este messias de quem se falou, eventualmente boa escolha para a primeira composição do governo em exercício, não poderia agora corresponder às expetativas geradas. Talento técnico não é só aquilo de que agora precisamos e dirigir um hospital, por maior que seja, é muito diferente de dirigir a saúde de um país. Se não o convidaram, houve perspicácia do Dr. António Costa, se recusou um convite, teve bom senso. Também não posso achar anormal que seja um militante do PS, o partido que governa por ter maioria na Assembleia da República, a desempenhar o cargo de ministro. No Reino Unido, bom exemplo de democracia parlamentar, só pode incorporar o governo quem seja membro eleito do parlamento de Londres. Acho excessivo, mas é assim. E, concluindo, é só lógico, diria natural, que seja alguém da confiança do primeiro-ministro, o responsável pela escolha dos membros do governo a que preside. Logo, tudo normal na escolha do atual ministro da saúde.

O que nos interessa, sempre interessou, é perceber qual a importância que o governo dará às questões da proteção da saúde, como o Dr. Fernando Medina irá encarar as necessidades de financiamento da saúde, despesa ou investimento, até que ponto o Dr. António Costa tem disposição para governar com a saúde em todas as políticas.

Assegurado o respaldo político que, nesta última fase de governação socialista, tem faltado aos antecessores, o Dr. Manuel Pizarro terá de possuir imaginação, saber, e capacidade de diálogo para a construção da reforma da prestação de cuidados de saúde em Portugal. Terá de ir muito para além do programa do governo, escasso no detalhe, do OE, limitado nos meios, e do PRR, sem enfoque suficiente na saúde.

Só com um compromisso empenhado de todo o governo, não apenas do primeiro-ministro, e com extrema competência poder-se-á levantar o SNS do poço para onde foi atirado. Arremessado por falta de visão, inadaptação aos desafios, pequenez de raciocínios, enfim, pela incompetência que as dificuldades, qual Princípio de Peter, revelaram.

Todavia, aproveitando a vontade que o Dr. Pizarro terá para fazer bem, ficar bem na fotografia como é habitual dizer-se, esta pode ser uma oportunidade para que os stakeholders da saúde, bem como os partidos da oposição, possam encontrar um espaço de diálogo em que as ideias floresçam, os desígnios se cumpram e o direito à proteção da saúde se torne efetivo. Haja vontade.

Ser um político da confiança do primeiro-ministro – que outra coisa poderia ser? –  desde que isso corresponda a ter apoio de todo o governo, poderá ser uma boa notícia. Aceito que possa não ter autoridade para dar sugestões ao Dr. Manuel Pizarro, o mesmo que teve a gentileza de me dar algumas – boas – quando o substitui no governo. Mas deixo-lhe umas notas que são apenas sublinhar o óbvio; não se deixe apanhar em mentiras e contradições, não prometa se não souber que pode cumprir, não assuma nada por garantido, desconfie de tudo e todos, em particular dos que lhe derem sempre razão, não se deixe bajular, não salte para a piscina sem ter a certeza de há água no recipiente, reveja as prioridades, não tenha pressa no acessório, não governe por discurso, fale só quando tiver alguma mensagem que mereça ser ouvida, não revogue por revogar, mas elimine todas as peças legislativas que possam ser empecilho, estude, leia, oiça, veja, procure compreender, não se convença de que é melhor, mais competente, do que é verdadeiramente, rodeie-se bem.

Estou sem réstia de esperança, mas não se deixem influenciar pelos pensamentos de um médico que já só conta os dias que lhe faltam para a reforma. Foi a isto que os últimos anos me levaram.