Na formulação de novas propostas para as políticas europeias da próxima década observamos os esforços da União Europeia para consagrar uma agenda das alterações climáticas e riscos globais, da economia da biodiversidade, dos ecossistemas e serviços de ecossistema, enfim, de uma economia energética hipocarbónica e ecossistémica. De onde se deduz que temos de voltar a reconhecer a imanência dos territórios e reinventar um contrato social com o mundo agro-rural para lá de todas as dicotomias reais e artificiais criadas pela modernidade urbano-industrial e urbano-rural.

No cruzamento das grandes transições em curso – climática, ecológica, energética, digital, laboral – os bens e serviços que incorporem, ao mesmo tempo, a eficiência económica, a responsabilidade social, a sustentabilidade ambiental e a cultura dos territórios, serão considerados bens de mérito e reputação e estes atributos distintivos serão a sua fonte de valor primordial, que a sociedade premiará quer por via do preço, de contrato e/ou transferência pública. A procura destes sinais distintivos tornar-se-á, em si mesmo, um fator de diferenciação por excelência e os territórios-rede procurarão constituir-se à sua volta. Assim é, por maioria de razão, também, com a agricultura e os mercados de futuro do mundo rural onde o objetivo primordial é reduzir as pegadas ecológica, energética, hídrica, pedológica.

Os mercados de futuro do mundo rural

Do que se trata, portanto, é de criar as condições para que estes sinais distintivos vejam a luz do dia e sejam, progressivamente, incorporados no desenho dos mercados agroecológicos, a fonte de provisão dos bens de mérito e reputação. Pela sua natureza sócio-estrutural, os mercados agroecológicos serão o grande desafio do próximo futuro, quer para a investigação científica, na zona de fronteira entre a economia e a ecologia, quer para as políticas do território, na formulação conceptual e no desenho de novos instrumentos, de tal modo que seja possível lançar uma nova geração de bens públicos rurais e infraestruturas agroecológicas, em que o lugar central seja desempenhado pelos mercados e bens de mérito e reputação.

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Chegados aqui, estamos em condições de enunciar aqueles que serão, seguramente, os principais mercados de futuro do mundo agro-rural das próximas gerações. Eles estarão, certamente, na confluência de quatro grandes vetores estruturantes: a biodiversidade, a agroecologia, os ecossistemas e as paisagens globais. Eis os principais mercados de futuro do mundo rural:

  • Os mercados dos produtos “limpos, justos e seguros”: uma gama cada vez mais alargada, que as biotecnologias, as tecnologias agroecológicas e ecossistémicas, mas, também, a agricultura de precisão vão dilatando;
  • Os mercados do carbono: as transações entre quem limpa e quem suja e o papel dos fundos de investimento no “sequestro carbónico” do mundo rural;
  • Os mercados da água: da água da chuva à água do mar e desta até à água da rede, de novo as cisternas da nossa nostalgia, quem sabe?
  • Os mercados da biodiversidade e dos serviços de ecossistema: os bens de mérito por excelência, socializados, com gosto, por todos nós, os contribuintes;
  • Os mercados das amenidades e da arquitetura paisagística: o ordenamento da paisagem global é um recurso precioso e uma externalidade de primeira linha para a produção de amenidades recreativas e turísticas;
  • Os mercados dos 4R: reduzir, reciclar, reparar e reutilizar é uma questão fundamental de consumo responsável, simples, rápida e barata de pôr em execução, logo uma indústria em rápido crescimento;
  • Os mercados dos produtos com identidade e denominação de origem: estes são os nossos “produtos glocais”, aqueles que importa valorizar a todo o custo, porque põem no mapa os nossos territórios mais remotos;
  • Os mercados dos produtos pós-convencionais: as diferentes modalidades de agricultura comunitária, ao serviço, por exemplo, de uma política de institutional food;
  • Os mercados da mitigação, adaptação e compensação: as alterações climáticas não perdoam, eis, pois, mais uma linha fundamental de intervenção para a política pública;
  • Os mercados dos alimentos funcionais, os “alicamentos”: a investigação biotecnológica ao serviço da saúde pública;
  • Os mercados da microgeração energética integrada: os sistemas integrados, desde a poupança e a eficiência até à diversificação das fontes, em que os consumidores são, também, produtores de energia;
  • Os mercados da prevenção, contingência e segurança: um mercado em crescimento rápido, da meteorologia, dos equipamentos de aviso e alerta até aos processos laboratoriais de rastreabilidade dos produtos;
  • Os mercados da regeneração e da renaturalização dos recursos e dos ecossistemas: da engenharia biofísica e da arquitetura paisagística até à cirurgia reconstrutiva das áreas ardidas.

Nesta linha de argumentação, os investimentos a financiar pela política pública serão, essencialmente, os seguintes: investimentos na biotecnologia dos produtos e ecossistemas para melhorar a sua produtividade, em gestão ambiental de redução, reciclagem e reutilização de recursos, em mitigação e adaptação para combater as alterações climáticas, em sistemas descentralizados de produção de energias alternativas, na reconstituição e melhoramento de mosaicos paisagísticos e na formação de amenidades paisagísticas e recreativas.

Os processos de ruralização em curso

Uma outra faceta do problema diz respeito aos processos de ruralização em curso, se quisermos, às relações de poder no universo do mundo rural e que podem, a qualquer momento, colidir com os mercados de futuro, tal como os enunciámos. Estão em curso distintos processos de ruralização que são, cada um a seu modo, fonte de muitos e novos conflitos de interesse. Chegados aqui, não podemos mais idealizar o mundo rural por mais assombrosas que sejam as nossas representações e encenações. Na retaguarda dos imaginários urbanos sobre o mundo rural correm as relações de poder e os processos agro-políticos que, na sua discrição e arbitrariedade, determinam o essencial das relações sociais e as sociabilidades do mundo rural. Por isso mesmo, não devemos confundir o frenesim dos novos atores do mundo rural com as relações de poder no interior do mundo rural português, uma mistura, por vezes perversa, de abandono, concentração e intensificação das terras. Eis alguns dos principais processos de ruralização em curso que recortam o território nacional de modo muito diverso e cuja variedade é, afinal, a marca mais distintiva do rural tardio português:

  • O rentismo imobiliário expectante em busca da extração de mais-valias fundiárias;
  • A florestação industrial de terras agrícolas (as grandes plantações ordenadas);
  • A industrialização verde ou o greening produtivista;
  • O radicalismo conservacionista e as grandes propriedades naturais ou naturalizadas;
  • A residencialização do espaço agro-rural (os loteamentos em espaço rural);
  • A energetização do espaço agro-rural (os parques energéticos e os biocombustíveis);
  • A turistificação das amenidades rurais (grande variedade de parques bioambientais);
  • A cinegetização do espaço rural (as grandes reservas de caça);
  • O produtivismo das agriculturas especializadas (as explorações superintensivas);
  • A extensificação/intensificação da agricultura multifuncional do montado;
  • A certificação de agriculturas com indicação geográfica e denominação de origem.

Como é óbvio, os novos valores relativos ao ordenamento, à proteção do património natural e do interesse público, ao uso múltiplo e à acessibilidade ao espaço agro-rural conflituam com a tentativa de privatização de alguns processos de ruralização em curso. Os conflitos são inevitáveis, as anexações e desanexações frequentes, a falta de regulação das atividades intensivas parece evidente, a declaração de utilidade pública reclamada, o risco moral e o passageiro clandestino acontecem amiúde, a coabitação de distintos processos de ruralização é, muitas vezes, fruto de arranjos de conveniência política local e nacional.

Em conclusão

Quero acreditar que a próxima geração de políticas públicas para a agricultura e o mundo rural será orientada prioritariamente para a promoção dos mercados de futuro e dos bens de mérito na linha dos quatro eixos antes referidos – biodiversidade, agroecologia, serviços de ecossistema e paisagem – e que, nesse sentido, a política de subsídios à produção e ao rendimento da União Europeia, via PAC, dará lugar, progressivamente, a uma ajuda contratual por serviços prestados via Pacto Ecológico Europeu em sentido amplo, de acordo com uma mistura inteligente de mercado, contrato e transferência, pelo menos enquanto o preço do produto final não incorporar ou internalizar toda a fileira de mérito e, em especial, os seus efeitos externos negativos. Estou convencido de que, além disso, os quatro eixos referidos estarão na origem de uma regulação pública mais apertada dos distintos processos de ruralização em curso, na exata medida em que estes, pelo seu poder expansivo, poderão colidir com a formação dos territórios-rede mais frágeis do mundo rural e que esta ecologia política da regulação constituirá a grande reforma estrutural da União Europeia para o advento da segunda ruralidade. Este será, também, o grande contributo da União Europeia para o pós-produtivismo da segunda modernidade.

Uma última nota diz respeito aos efeitos externos negativos de um capitalismo que continua o seu trabalho de sapa contra a autonomia e a diversidade dos territórios e, nesta linha, muitos processos de ruralização em curso serão impiedosos se não forem contrariados pelas medidas de política do pacto ecológico europeu e da nova PAC. Neste contexto, importa dizê-lo com toda a firmeza, é necessário recuperar as funções nobres de planeamento, extensão e avaliação que as associações sectoriais e regionais nunca foram capazes de levar a bom termo. As políticas públicas ficaram sem retaguarda técnica e logística no terreno, pois as associações abandonaram uma parte das funções de assistência técnica para assumirem as “modernas tarefas do lobbying institucional”. Esta mudança fundamental de orientação estratégica das associações sectoriais, da assistência técnica para o lobbying institucional, politizou os grupos de interesse e desvirtuou o sentido da negociação. Os resultados estão à vista. Os serviços públicos regionais de agricultura e a inteligência coletiva das associações locais foram as primeiras vítimas. A sua debilitação atual é pública e notória.