Entre as centenas de medidas incluídas no Orçamento de Estado para 2023 (OE2023), há uma que quase passou despercebida: uma isenção especial que autoriza que os contratos públicos para as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) possam ser feitos sem concurso público e sem visto prévio do Tribunal de Contas. Na verdade, é uma repetição: a medida já constava do Orçamento de Estado para 2022, aprovado em Maio. Agora, prolonga-se para 2023.
Porquê uma isenção especial? Simples: a preparação deste grande evento que trará o Papa Francisco a Lisboa está tão atrasada, tão atrasada, tão atrasada, que a única forma de assegurar a sua realização é passar cheques em branco. Perguntar-me-ão: qual é a surpresa, se em Portugal é sempre assim? Sim, pois é, mas não deveria ser: experiências passadas já nos ensinaram que a ausência de planeamento arrasta custos acrescidos e que, quando os investimentos de milhões de euros ficam dispensados de escrutínio, esses custos tornam-se muito penalizadores para contribuintes.
Retomo a história desde o início. As Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) terão lugar em Lisboa, em Agosto de 2023. A escolha da capital portuguesa foi anunciada em 2019, com data prevista para 2022 — data entretanto adiada (em 2021) para 2023, devido à pandemia da Covid-19. Ou seja, há 3 anos que todas as autoridades públicas implicadas sabem que têm a responsabilidade de organizar o evento. Hoje, a menos de um ano da sua realização, os preparativos estão nitidamente aquém do que seria desejável.
Exagero? Olhe que não. Não há um orçamento fechado e pronto a aplicar, não há sequer estimativa final do investimento que será aplicado e, nesta data tão próxima do evento, existem ainda inúmeras variáveis em aberto, incluindo a divisão de algumas responsabilidades entre governo e municípios — como bem assinalou Paulo Ferreira.
No final de Julho, Carlos Moedas assumia que “a Câmara Municipal de Lisboa (CML) não era promotora do evento” e, consequentemente, pedia apoio ao governo, limitando o investimento de Lisboa a 35 milhões de euros. Por seu lado, José Sá Fernandes, coordenador das JMJ e ex-vereador da CML, revelava “alguma apreensão”. O governo manteve-se em silêncio durante semanas, embora agora se saiba que assume uma fatia dos custos. Em Loures, que participa na organização, os trabalhos arrancaram pouco antes do Verão, mas com o presidente da Câmara a assinalar o que encontrou quando recentemente assumiu o cargo: “não havia nada feito”, “nem sequer havia sido feito um estudo geológico no próprio terreno” que será intervencionado para receber os participantes. Resultado: agora, se o OE2023 não incluir essa excepção para as JMJ, os prazos normais dos procedimentos de contratação pública tornam impossível a preparação do evento.
Esta enumeração de atrasos e desencontros não visa apontar o dedo aos actuais presidentes das Câmaras de Lisboa e de Loures, pois ambos iniciaram os seus mandatos há um ano e são sobretudo responsáveis pelos avanços neste processo (e não pelos seus atrasos). O dedo aponta-se, sim, a quem acompanhou o processo desde 2019. Já que se vai abrir uma excepção para um grande volume de investimentos públicos, o mínimo exigível seria que os anteriores presidentes destas autarquias e o governo nos explicassem por que razão tão pouco se fez no tempo certo. Esperemos sentados.
Ora, tudo isto me leva a dois pontos. Primeiro, em Portugal, o procedimento padrão consiste em sacrificar o planeamento, arrastar indecisões até que os atrasos se tornem irrecuperáveis e trabalhar sob a pressão do cronómetro, abrindo espaço a erros e falhas — e, no final, se até correr menos mal, celebrar o milagre. Segundo, em Portugal, publicam-se leis para enquadrar a contratação pública, em prol da boa gestão do dinheiro dos contribuintes, para depois, em nome do interesse nacional, se abrirem excepções ao cumprimento dessas leis. Moral da história: a incompetência compensa e a lei é para publicar mas não é para cumprir.
Que tudo isto passe entre os pingos da chuva do debate público diz muito sobre a nossa falta de exigência. Começa a faltar paciência para um país que recusa aprender com os seus próprios erros.