Temos tido um Verão politicamente curioso. Mesmo quando parecia termos já visto tudo, houve sempre mais alguma coisa para ver. Tivemos o “diabo” de António Costa e depois as 35 horas de Assunção Cristas, para não falar do sindicalismo da direita e do ordeirismo da esquerda durante a greve dos camionistas.

Talvez haja quem pense que tudo está trocado, como as estações do ano. Mas neste caso, não é o aquecimento global: é apenas o arrefecimento de uma sociedade onde a política, por falta de sustentabilidade, vai morrendo.

Antes de mais, convém notar que a discórdia continua, e até mais azeda do que nunca. Mas passou a corresponder a meras posições circunstanciais. O que de facto existe politicamente em Portugal neste momento são só duas modalidades de ser: governo e oposição. Quem está no governo – direita ou esquerda –, faz cativações, aumenta impostos, resiste a reivindicações e é céptico em relação ao TGV; e quem está na oposição – esquerda ou direita –, preocupa-se com os serviços públicos, quer baixar impostos, adere a todos os protestos e namora a alta velocidade.

As más finanças, a estagnação económica e o envelhecimento demográfico tiraram oxigénio a tudo o que relacionávamos com direita e esquerda. Direita e esquerda existem ideologicamente em Portugal, mas deixaram de ser relevantes politicamente.

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Dir-me-ão: mas foi sempre assim. Acontece que não foi. A política nas democracias ocidentais não favorece viragens cortantes, porque é pluralista, representativa, segue procedimentos e está sujeita a alternância. Nunca, portanto, um projecto político pôde aspirar às rupturas bruscas e unilaterais que só podem ser decretados por ditaduras mais ou menos homogéneas doutrinariamente. Tudo tem de ser negociado e está limitado pelos protocolos legais e institucionais. Em democracia, só pode haver “revoluções” metaforicamente.

Mas isso nunca quis dizer que as democracias da Europa ocidental não tivessem escolha. Basta pensar no contraste entre a política de nacionalizações dos anos 1940-50, e a política de privatizações dos anos 1980-90. No actual regime, Portugal passou do socialismo da constituição de 1976 para os mercados abertos da constituição revista de 1989. Ora, foi essa margem de manobra, para discutir e optar entre modelos de sociedade, que se perdeu. Somos hoje uma sociedade envelhecida e endividada, onde só os preços das casas se aproximam da Europa. Não são possíveis grandes opções, como se viu nas transições políticas de 2011 ou de 2015: para garantir o financiamento do Estado perante as instituições internacionais, a direita teve de aumentar impostos em 2012 e a esquerda teve de fazer cativações em 2016.

A política dos princípios é um luxo que deixámos de nos poder permitir. Mas o fim da política onde a governação era inspirada por ideias diferentes sobre a sociedade não quer dizer o fim das divisões. Pelo contrário. Como temos visto nos debates deste Verãos, nunca os líderes dos partidos em Portugal fizeram tanta questão de se “diferenciar”. Da mesma maneira, no mundo que rodeia a política, a exasperação e a crispação aumentaram. Ao desligar-se de qualquer projecto governativo, que sempre impõe limites e responsabilidades, a ideologia começou a existir sob a forma de purismo e de paranoia. Nos países onde a política morre, a selvajaria renasce, mesmo que apenas virtualmente.

Quanto mais condicionados, mais agressivos precisamos de nos tornar, para gerar o simulacro das diferenças que deram tradicionalmente sentido à política. É um sinal do fim, não do princípio.