Entrei pela primeira vez no antigo Pavilhão de Segurança do Hospital Miguel Bombarda, conhecido familiarmente pela “Oitava”, por causa de uma exposição de fotografia. O lugar, hoje vazio, silencioso, relva verde a cobrir a área central onde antes se erguia uma torre de vigia, podia ser um claustro monástico. É um museu da psiquiatria portuguesa. É também um um edifício panóptico (observação total), um dos raros existentes no mundo e como tal classificado pelo IPPAR.

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O panóptico foi idealizado por Jeremy Bentham, um filósofo inglês do século XVIII mais conhecido como fundador do utilitarismo. O edifício consistia numa estrutura circular, com celas dispostas ao longo do perímetro, e uma torre de vigia ao centro com um vigilante que, pormenor crucial, não era visível aos vigiados: sem poderem ver o vigilante, sem saberem se este os vigiava, os prisioneiros tenderiam a agir sempre como se estivessem a ser vigiados. Foucault, no seu livro Surveiller et punir: naissance de la prison, usou o panóptico de Bentham como metáfora para as relações de poder nas sociedades modernas. Mas Bentham andava longe destes cenários apocalípticos. Queria simplesmente construir uma prisão e ser o seu governador, com o objectivo prosaico de ganhar dinheiro. Para isso escreveu um livro e tentou vender a ideia aos irlandeses, à França revolucionária e, por fim, ao primeiro-ministro inglês, William Pitt. Mas a tecnologia da época e as intrigas da corte não ajudaram e a prisão de Bentham nunca foi construída.

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O panóptico português, embora construído como parte de um hospício, também foi pensado como prisão. Foi construído a partir de 1892, integrado num vasto conjunto de obras ordenadas por Miguel Bombarda assim que tomou posse como director do Rilhafoles. Desde que, em 1848, o Marechal-Duque de Saldanha decidira edificar em Lisboa um manicómio e aí reunir os alienados até então dispersos por vários hospitais e asilos, o hospital sofrera uma ignóbil decadência. As descrições publicadas nos jornais médicos da época referem doentes sem visitas médicas durante anos, amarrados em celas onde não entrava a luz do dia; uma enfermaria conhecida como “dos imundos”; e uma mortalidade pavorosa (um quarto dos internados, média anual). Bombarda mandou derrubar as paredes das antigas celas conventuais e fazer enfermarias amplas, separadas por sexos, definiu a periodicidade e as características das visitas e dos tratamentos a aplicar aos internados, lançou as bases da ergoterapia e da balneoterapia

O panóptico, ou Pavilhão de Segurança, foi construído para acolher os “alienados criminosos” provenientes da Penitenciária que, nas palavras de um colega de Bombarda, Júlio de Matos, não podiam ser misturados com os “alienados comuns” porque, neles, o crime era “indício seguro de uma degenerescência regressiva” que os fazia “eminentemente perigosos”, atreitos à “mentira” e à “intriga”, cheios de “vícios, contraídos nos cárceres e nas casas de libertinagem” e com uma “constante preocupação de fuga”. Esta mistura entre criminalidade, vagabundagem, vício e doença mental, entre polícia e saúde pública, era corrente na medicina da época. Nas teses dos alunos finalistas da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa do mesmo período encontram-se temas como a caracterização antropométrica (obviamente anormal) das prostitutas, a epilepsia como estigma de “degenerescência” e (em conjunto com a sífilis e o alcoolismo) factor predisponente à acção criminosa, ou a necessidade de vigilância “policial e médica” das “classes laboriosas, perigosas e viciosas”, sobretudo nos “botequins e cafés”.

O próprio Miguel Bombarda escrevia, peremptório, no seu livrinho A consciência e o livre-arbítrio, de 1898: “no campo neuropático há transformações, mas regressivas, há selecção mas faz-se às avessas … as relações íntimas da loucura e da criminalidade [constituem] enorme feixe de factos comprovados, sobre os quais a ciência não tem qualquer dúvida”.

Nota: informação preciosa sobre Miguel Bombarda e a psiquiatria portuguesa dos finais do século XIX pode ser encontrada na obra coordenada em 2006 por Ana Leonor Pereira e João Rui Pita, Miguel Bombarda (1851-1910) e singularidades de uma época e no artigo de Luis Quintais, de 2008, Torrente de loucos: a linguagem da degeneração na psiquiatria portuguesa da transição do século XIX, todos da universidade de Coimbra.