Cuzco, no meio dos Andes peruanos, julho de 2001. No meio da cidade descubro um dos sorvedouros turísticos de Cuzco, o famoso Korikancha: um mosteiro dominicano plantado em cima de um edifício anterior, com as características paredes de pedra inclinadas do sistema antissísmico dos incas. Chegados à capital dos incas, os missionários católicos usaram esta subtil forma de conversão: em cima de um local de culto pagão, construíram o local de culto cristão, fazendo uso do sempiterno comodismo da natureza humana. Já que se tinham habituado a visitar para efeitos religiosos o Korikancha, então continuariam a ir, para iguais efeitos, à igreja dominicana que ocupava o mesmo sítio. Nada como ser prático.

Por volta do século IV, algures no mundo romano. 25 de dezembro estabelece-se como data de nascimento de Jesus. Não se sabem com exatidão os argumentos que estacionaram nesta data, mas não terá sido totalmente alheio coincidir com a festa romana de Saturnalia ou a do Sol Invicto do imperador Aureliano. Já que os gentios celebravam uma festa em finais de dezembro, continuavam a celebrar uma festa em finais de dezembro se se convertessem ao cristianismo.

Século I, Jerusalém. São Paulo e São Pedro têm um embate, tão forte que os Atos dos Apóstolos e as Cartas de São Paulo estão repletos dele. Resumindo muito, São Pedro (e São João e São Tiago) queria manter o cristianismo dentro da Lei Mosaica do judaísmo e São Paulo pretendia que os gentios que se convertessem não fossem obrigados aos estritos trâmites judaicos. Vingou a proposta mais facilitista, digamos, de São Paulo.

Exemplos desta tendência pragmática na história do cristianismo e da Igreja são infindáveis. E, em boa parte, responsáveis pela expansão do cristianismo. Se viam como objetivo converter as populações, claro que os evangelizadores não se colocavam com rodriguinhos doutrinários exigentes, porque aí apenas convenceriam um ou outro fanático. A ideia era ter muitas pessoas sob a alçada da Igreja para, aos poucos, lhes tornar natural a fé católica.

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É por conhecer tantos exemplos que me rio imenso com os católicos mais conservadores que acusam, quase em apoplexia, o Papa Francisco de querer seduzir as populações e de as querer trazer para o reduto católico sem lhes fazer testes exaustivos de virtude. Ah, o Papa está a sucumbir ao mundo, o apocalipse aproxima-se e a febre e a pestilência e etc.

Bom, alguma coisa de bem veio desta histeria ultraconservadora anti Francisco. Finalmente estes católicos perceberam que um Papa não está acima das críticas, nem a infalibilidade se aplica às decisões do Santo Padre sobre a hora a que toma o café a meio da tarde. Habituados que estavam a tentar calar os católicos menos conservadores com palavras papais e documentos do Vaticano – às quais dão o mesmo valor que à Bíblia ou ao Credo de Niceia – é um fartote agora vê-los insultando o Papa.

Tem piada que os católicos da resistência anti franciscana venham sobretudo da Igreja norte-americana. Provoca gargalhadas ver quem foi indecorosamente benevolente com os padres abusadores sexuais, insurgir-se contra as aberturas de Francisco aos católicos recasados, aos homossexuais, às alterações às anulações de casamentos. Que autoridade supõem ter a Igreja para moralizar sobre sexualidade, depois de acolher os mais indecentes pecados sexuais?

Para mim, que já muito contactei com jesuítas e abundantes vezes vi o mundo renitente ser seduzido por eles, Francisco não foi surpresa. Voltou a colocar o enfoque no fulcral. Em vez de uma organização obcecada com a moral sexual (alheia, claro), cheia de vontade de tornar os católicos um grupinho cada vez mais pequeno de gente sexualmente imaculada (mas demasiado suscetível aos ímpetos de julgar e excluir; é ver a alegria deste setor quando há uma excomunhão), Francisco retomou a missão evangelizadora que vem do tempo em que Jesus seduzia um número crescente de seguidores. Aos quais, hélas, Jesus (fazia-lhe bem aprender uma ou duas coisas com o cardeal Burke) também não aplicava testes psicotécnicos nem exigia garantias de castidade. Em vez de um grupinho restrito de fariseus preocupados em manter a sua pureza ritual, uma Igreja fiel à vocação preferencial pelos pobres e um local de acolhimento para os excluídos.

Francisco não é perfeito. Tem, como quase todos os padres, uma visão machista da Igreja. O meu amigo José Bento da Silva, por exemplo, queixa-se que é socialista. De facto, já carpimos juntos irritações com tiradas de jesuítas que parecem produzidas por Catarina Martins. É uma pena que atualmente a hierarquia da Igreja goste de dar palpites desacertados sobre economia, com o mesmo despropósito que no século XVI teimava em ser autoridade sobre os fenómenos da Astronomia.

Enfim, a tendência da Igreja para se meter onde não é chamada não se fica pela economia e não foi inventada por Francisco. Há uns tempos descobri que Pio XII (bem mais simpático que a sua fama injustamente sinistra) aprovou o método Lamaze para o parto sem dor, porque houve quem na Igreja no século XX visse necessidade de esclarecer que uma tirada do século VI a.C. (quando foram redigidos os mitos da Criação do Génesis e o castigo de Eva) não era uma maldição sobre o meu sexo. Escandalosamente, houve quem ponderasse ser compassivo e decente deixar mulheres sofrer durante o parto quando tal se podia evitar.

Sucede que a economia não é matéria de Fé (a epidural também não) e eu desculpo que o Papa diga disparates sobre capitalismo e liberalismo, desde que esteja certo no que conta. Isso: aquelas irrelevâncias do amor e perdão de Deus.