1 Um homem regressa a uma loja de animais meia-hora depois de ali ter comprado um papagaio. “Quero fazer uma reclamação”, diz o cliente ao dono da loja. “Qual é o problema?”, pergunta o dono da loja, devidamente fardado com uma bata castanha. “Eu digo-lhe qual é o problema: o papagaio que eu comprei aqui está morto!”, assegura, de forma assertiva o cliente, enquanto mostra a gaiola que contém um papagaio de penas azuis e amarelas deitado e imóvel, com a cabeça a sair da gaiola.

Fazendo curta uma longa história, o dono da loja começa a inventar que o papagaio está a descansar, atordoado ou simplesmente com o olhar fixo em algo. O cliente grita com a ave, pega na mesma e bate de forma violenta com o pássaro no balcão — e até o atira ao ar.

“Isto é o que eu chamo um papagaio morto! Não está apenas atordoado, passou o seu prazo de validade e foi encontrar-se com o seu criador. É um ex-papagaio!”, sentencia o cliente.

“Ok. Vou ter que o substituir”, assume, finalmente, o dono da loja, que vai às traseiras da loja para ir buscar outro papagaio. No regresso bem tenta vender outro animal que não o papagaio mas o cliente não aceita.

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Ao que o dono da loja responde: “Sabe uma coisa: eu nunca quis ter uma loja de animais. Sabe o que eu sempre quis ser? Um lenhador!!!!” E com isso retira a bata castanha, mostra a sua camisa axadrezada, como os lenhadores canadianos da Columbia Britânica usam, e sai da loja perante um incrédulo cliente.

2 Este é um dos sketches mais famosos do Monty Python. Inspirado pelo Miguel Pinheiro, que se recordou de outro sketch igualmente brilhante (o do cavaleiro negro que ficou sem braços nem pernas ao tentar fazer frente ao rei Artur) para descrever o estado político de João Galamba, a história do papagaio morto faz-me lembrar a forma como o Governo quer que olhemos para a intervenção do SIS no caso Galamba.

O papel do dono da loja podia perfeitamente ser interpretado qualquer um dos membros do Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações da República Portuguesa (SIRP): Constança Urbano de Sousa, Mário Belo Morgado e o farmacêutico Joaquim da Ponte.

É que todos eles não querem ver a evidente ilegalidade praticada pelo SIS e nem sequer quiseram ouvir o testemunho relevante de Frederico Pinheiro sobre a alegada coação praticada pelo agente D. No fim do dia, o que eles querem ser é… lenhadores. Fiscalizar os serviços de informações é que não. É capaz de dar muito trabalho.

Já o primeiro-ministro António Costa deseja que todos os portugueses sejam precisamente os mais ferrenhos dos lenhadores da Columbia Britânica — broncos, primários e ignorantes como os lenhadores dos Monty Python, pois só assim é que o Governo consegue vender a sua ideia de que este caso não tem importância alguma.

3 Vamos ser claros: esta intervenção do SIS recorda os tempos do poder absoluto e autoritário que José Sócrates tentou construir e quase conseguiu alcançar. O que está subjacente na forma como a secreta foi chamada pelo Governo de António Costa para ir buscar o computador às imediações da casa de Frederico Pinheiro indicia que os serviços de informações estão ao serviço do Executivo do PS — em vez de serem apenas e só um instrumento do Estado.

A suspeita de que pode ter ocorrido uma manipulação partidária dos serviços de informações para assustar alguém que poderia provocar danos na imagem do Governo — tal suspeita é algo demasiado grave numa democracia madura como a portuguesa. Mesmo que a intervenção do SIS tenha características anedóticas (como teve) não nos esqueçamos deste ponto de ordem.

Esta suspeita só é reforçada por todas as trapalhadas que fomos conhecendo ao longo dos últimos dias:

  • O primeiro-ministro e João Galamba sempre falaram em “roubo” do tal computador recheado de segredos de Estado importantíssimo. Mas o alegado Conselho de Fiscalização do SIRP e o diretor do SIS, Neiva da Cruz, dizem que não houve qualquer crime;
  • Neiva da Cruz assumiu no Parlamento toda a responsabilidade pela ação do SIS, dizendo que a secreta atuou com base na palavra do gabinete de João Galamba de que o computador tinha matéria classificada;
  • O SIS não terá mexido no computador e entregou-o ao CEGER, o departamento de informática do Governo.

Deixando as contradições entre António Costa e os responsáveis dos serviços de informações, a verdade é que a versão mais benevolente dada pelo Governo aponta a ação do SIS como uma espécie de serviço de estafeta do Governo. O que por si só, diz muito.

4 Depois há toda a questão da desproporcionalidade na ação do SIS. Em primeiro lugar, pela tremenda rapidez com que a secreta atuou. Como o Observador revelou em exclusivo, Frederico Pinheiro enviou às 23h02m do dia 26 de abril um email dirigido ao diretor do CEGER, com conhecimento para João Galamba e para a sua chefe de gabinete, para informar de que queria devolver o computador. Pinheiro solicitava a marcação de um dia e uma hora para entregar a máquina

Às 23h05, três minutos depois — repito, três minutos depois —, o ex-adjunto de Galamba recebeu uma primeira chamada de um número que não conhecia. Às 23h11, nova insistência que Pinheiro atendeu. Era o agente do SIS.

Como o juiz conselheiro Mário Mendes explicou no programa “Justiça Cega” da Rádio Observador, “o SIS ligar às 23h para um cidadão não é normal”. E não é normal porque nem sequer a Polícia Judiciária faz isso. Pela simples razão que a nossa lei proíbe, como regra geral, a realização de buscas judiciais durante a noite.

Por isso é que a constitucionalista Teresa Violante disse no mesmo programa que, se tivesse estado na pele do ex-adjunto, teria sentido “temor do SIS”.

Se acrescentarmos a tudo isto o indício de que o agente do SIS terá atuado com alegada intimidação ou coação sobre Frederico Pinheiro para o ex-adjunto entregar o computador — isto quando Pinheiro não era obrigado a entregar o computador ao agente da secreta que o contactou porque este não tinha (e não tem) qualquer autoridade para exigir tal entrega.

Se somarmos todos estes factos, há muitas razões para estarmos preocupados com este tema porque existe a suspeita de pode haver aqui um comportamento padrão do SIS. E ainda há a pergunta que se impõe: será que o Governo acionou o SIS noutras situações semelhantes que desconhecemos?

5 Bem pode o primeiro-ministro dizer que o Conselho de Fiscalização do SIRP, formado por uma ex-ministra (Constança Urbano de Sousa) e um secretário de Estado do seu Governo (Mário Belo Morgado) e um farmacêutico, atestaram a legalidade do SIS…

Bem pode António Costa alegar isso, repete-se, que é claro neste momento que o Conselho de Fiscalização está ferido na sua autoridade e na credibilidade. E a renuncia de todos os seus membros e respetiva substituição por figuras credíveis é cada vez mais um imperativo.

Pior, contudo, é o facto de o primeiro-ministro ter dado ordens para que o Governo não preste mais esclarecimentos públicos sobre este caso.

Depois do ministro João Galamba ter afirmado publicamente no dia 29 de abril que falou com António Mendonça Mendes (secretário de Estado de Adjunto do primeiro-ministro), com Mário Campolargo (especialista em cibersegurança e igualmente secretário de Estado de António Costa) e com a ministra Catarina Sarmento e Castro — o manto do segredo e da confidencialidade desceu sobre este tema.

É verdadeiramente extraordinário que, numa democracia madura, como é o caso da portuguesa, ainda seja possível ao Governo impor a lei da rolha e impedir que Mendonça Mendes, Campolargo e Sarmento e Castro façam a sua prestação de contas.

É precisamente a transparência e a necessidade de explicar o que se fez (ou não se fez) — que impõe uma explicação pública de Mendonça Mendez, Campolargo e Sarmento e Castro. Qualquer membro do Governo e até qualquer membro da administração pública está sujeito a um sistema de accountability (prestação de contas) pelo que fez e pelo que não fez…

6 O Governo não é a única entidade que está em silêncio. Também a Procuradoria-Geral da República (PGR) optou por se remeter ao seu habitual estado de letargia, como se uma daquelas cortinas dos teatros descesse sobre a sede da PGR  na rua Escola Politécnica, em Lisboa.

Há indícios de que poderá ter sido praticado um crime de abuso de poder por parte do agente do SIS que contactou Frederico Pinheiro, logo tal alegado crime poderia ser investigado no inquérito aberto pela Polícia Judiciária para investigar a forma todos os alegados crimes que foram denunciados publicamente pelo primeiro-ministro e pela ministra da Justiça.

O que acontece é que, como é normal ao longo destes cinco anos de mandato de Lucília Gago, impera o silêncio na PGR. Acresce a tudo isso que a procuradora-geral não tem qualquer política de comunicação para fazer a prestação de contas a que está igualmente obrigada.

O mandato de Lucília Gago já vai em cinco anos e não só nunca deu uma entrevista, como tem horror a falar em público. As suas diretrizes para o gabinete de comunicação social nem sequer são claras para que se perceba a coerência de responder a umas perguntas e não a outras.

O que é dramático num órgão que foi inovador em 1999 quando o então procurador-geral Cunha Rodrigues decidiu criar o gabinete de imprensa, quebrando com a tradicional lei do silêncio no Poder Judicial que o primeiro-ministro António Costa muito deve apreciar.

No caso em apreço, é imperioso que a PGR esclareça, em nome da paz pública, se há ou não indícios para preocupação da opinião pública. Ao não dizer nada, Lucília Gago deixa transparecer a imagem de que não se quer pronunciar sobre o tema com medo de desagradar ao Governo. O que é terrível para a imagem da autonomia do Ministério Público.

7 As audições desta quarta e quinta-feira até podem levar à conclusão de que a montanha pariu um rato. Frederico Pinheiro até se pode remeter ao silêncio e João Galamba e a sua chefe de gabinete podem invocar segredo do Estado para nem sequer prestarem declarações sobre o tema.

Poucas dúvidas tenho, contudo, de que este é um dos casos mais graves dos últimos largos anos de violação das regras do Estado de Direito democrático. A memória que temos da Ditadura está na origem das fortes restrições a que os serviços de informações estão sujeitos em Portugal e com essa memória histórica não podemos brincar — mesmo que isso dê jeito a um PS tão afoito a recordar o fascismo a propósito das palermices do Chega.

O oportunismo político do primeiro-ministro e do seu partido não justifica tudo.

E logo num Governo que é liderado por alguém (António Costa) que, de acordo com o seu melhor amigo (Diogo Lacerda Machado), escolheu “ficar pobre” quando “podia ser rico”. Isto se tivesse seguido uma carreira como advogado, claro.

Parece que, de acordo com Lacerda Machado, é expetável esperar que o povo português fique eternamente agradecido ao pobre mas nobre António Costa — um homem que se sacrificou pelo país e que está obviamente acima de qualquer suspeita.

Mesmo quando indica o seu melhor amigo para uma administração de uma empresa pública. Aos socialistas, os tais “pobres” que poderiam “ser ricos”, tudo se perdoa.

Texto alterado às 9h16m