É-nos facilmente esquecível e imperceptível toda a sensação de privilégio de todos os dias, no nosso modesto país, podermos acordar a desligar o toque do irritante despertador, puxar do telefone e fazer scroll no feed de uma rede social qualquer, ver as capas dos jornais do dia, levantarmo-nos da cama acompanhados de uma indolente lentidão de movimentos, preparar pequenos almoços, vestir crianças, pegar na trouxa e ir à nossa vida, sem darmos conta da mais evidente circunstância que nos permite levar a cabo, com sucesso, a fastidiosa monotonia da rotina diária. A paz.

Não fosse a paz, seria completamente impossível haver qualquer tipo de rotina estabelecida, duradoura e monótona. A monotonia e o aborrecimento são um produto da paz, e são o preço a pagar por ela, povos que vivam em paz, têm forçosamente de a pagar com a submissão à monotonia, o que faz das nossas vidas mundanas e monótonas um privilégio sem preço.

Ter 200 canais de televisão e não ter nada que nos entretenha é um privilégio sem preço. Não haver ovos na mercearia da esquina, é um privilégio sem preço. Não saber o que fazer no fim de semana, é um privilégio sem preço. Ter uma fila enorme de gente à frente para pagar no supermercado, é um privilégio sem preço. Ter que escolher entre sushi e pizza, é um privilégio sem preço.

É isto a paz na sua forma visível, porém, esta também tem a sua forma invisível. A paz invisível é sombria, vive num submundo obscuro e inclemente, assume contornos hediondos, austeros e carregados.

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Esta paz escondida na penumbra assume formas como o cano de um canhão, um gatilho de uma espingarda, o brilho de um míssil, uma farda camuflada ou o som de um disparo. É esta paz escondida, cujas formas comummente associamos à guerra, que permitem que nós, os privilegiados, tenhamos uma vida de tédio mas segura e em liberdade.

Sem esta paz invisível nunca existiria uma paz visível e palpável, existiria uma ausência de paz, ou seja, o caos, e o caos é aterrador, aterrador porque, enquanto seres humanos, não fomos feitos para viver nele, daí procurarmos constantemente a paz e a ordem, porque o caos agita as águas, e quando as águas se agitam torna-se difícil auscultar qual será a ordem que daí surgirá, e se essa ordem nos será favorável ou desfavorável, e essa incerteza só nos perturba.

Heis o paradoxo da paz: para que ela exista e para que não vivamos no caos necessitamos de a guardar fortemente com os instrumentos que causam esse próprio caos, para que quem ouse perturbar a nossa paz se amedronte com o caos que lhe possamos vir a causar. Como escreveu Vegécio no século IV, no Império Romano, na sua obra Epitoma Rei Militaris, “se queremos a paz, preparemo-nos para a guerra”.

A paz não consiste na ausência do conflito, mas sim, na constante ameaça deste. O preço da paz é a própria ameaça da iminente violência implacável, porque o medo é um instrumento, e um cano apontado a um alvo, não é apenas uma salvaguarda, é um aviso.

A situação que se vive actualmente na Europa de Leste é a prova cabal de que o nosso modo de vida pacato, sereno e despreocupado não está garantido. Nunca esteve, pela simples razão de termos vizinhos hostis, sejam eles um ex-KGB com aspirações a Czar, sejam organizações terroristas baseadas no fundamentalismo religioso, ambos abominam o nosso modo de vida, assim como ambos nutrem ressentimentos profundos face à nossa prosperidade que os seus próprios povos admiram, ambicionando viver em liberdade e segurança, nem que, para tal, tenham de entregar as próprias vidas ao contrabando e ao risco de morrer em desumanas travessias marítimas.

E é precisamente por o nosso modo de vida pacato não estar garantido que é preciso desconfiar de movimentos políticos e sociais que advogam um pretenso pacifismo e uma desmilitarização e desinvestimento armamentista, reduzindo exércitos a tamanhos anedóticos, argumentando que já não fazem sentido no século XXI. É provável que os defensores dessa narrativa, das duas uma, ou ignorem totalmente a importância fundamental de dispor de forças armadas capazes de defender a nossa liberdade, ou não são assim tão defensores dessa mesma liberdade que nos pertence e nos permite viver em tão valiosa paz e pacatez. Não há argumentário mais pernicioso do que este nos tempos em que vivemos. Desmilitarizar é baixar a guarda perante os inimigos da nossa liberdade e democracia, não é promover a paz mas sim abrir as portas à guerra.

Este é o paradoxo da paz, se a desejamos preparemo-nos para a guerra, como defendia Vegécio, paradoxo praticamente idêntico ao recentemente reabilitado paradoxo de Popper, que nos exorta a ser intolerantes com os intolerantes, no sentido de defender, em si, a própria tolerância.

Defender a paz significa defender as armas, defender exércitos fortes e tecnologicamente avançados, defender a segurança do nosso bloco civilizacional europeu. As armas ao serviço da liberdade e da democracia serão sempre armas de defesa, nunca de opressão dos nossos povos vizinhos, ninguém na Europa Ocidental, no seu perfeito juízo, ambiciona marchar Rússia adentro, como a Rússia faz com os os seus vizinhos em pleno século XXI. Porém, não podemos ignorar a nossa vizinhança geopolítica e os seus métodos medievais. É para isso que precisamos da força das armas, para defender a nossa liberdade e democracia, e o nosso aborrecido e monótono modo de vida, livre do caos, do sofrimento, do genocídio, do massacre, do sangue, do sofrimento, das lágrimas e da morte ao virar da esquina numa fila para comprar pão.