Reza a Bíblia que, depois de Eva ter provado o fruto proibido, Deus ter-lhe-á dirigido a palavra com o castigo: “Farei com que as tuas dores de parto sejam muito severas; com trabalho de parto doloroso darás à luz filhos. O teu desejo será para o teu marido e ele te dominará.” (Genesis 3:16).

Esta história é, naturalmente, um mito etiológico para tentar explicar o mundo e a realidade há cerca de 2.5 milénios. Como nos ensina a melhor teologia, o pecado original não é um legado biológico, mas simplesmente uma rede colectiva histórica da qual todos fazemos parte.

No entanto, retomo a história do pecado original porque me parece que o “castigo” biológico atribuído às mulheres nesta história é, também, o pecado original da desigualdade entre homens e mulheres. Ao contrário do que muitas vezes é afirmado, a desigualdade económica e social entre géneros actualmente existente nas sociedades democráticas desenvolvidas da Europa e da América do Norte já não se deve à discriminação nem aos preconceitos das regras formais ou das normas sociais. Apesar de ser política e mediaticamente fácil continuar a acenar essa bandeira, ela é desajustada e já não corresponde à realidade. Insistir nessa bandeira desvia as atenções dos problemas verdadeiros que devem ser resolvidos.

No seu mais recente livro Career and Family: Women’s Century-Long Journey toward Equity, a economista e historiadora económica Claudia Goldin – que em 1990 se tornou a primeira mulher a obter uma posição permanente no departamento de Economia da Universidade de Harvard e que um dia destes ganhará um Nobel – utiliza imensos dados e décadas de trabalho rigoroso de investigação para analisar a questão da desigualdade salarial e laboral entre homens e mulheres.

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A certa altura, Goldin pergunta: “serão a discriminação por gestores e colegas de trabalho e a suposta fraca capacidade de negociação das mulheres os principais responsáveis ​​pela diferença de género nos rendimentos hoje? Sem menosprezar aquelas que de facto foram discriminadas e ganharam menos simplesmente porque são mulheres, ou porque são mulheres de cor, a resposta é, enfaticamente, não. Apenas uma pequena parte da actual diferença salarial entre homens e mulheres se deve a esses factores”. (tradução minha, negrito e itálico adicionados por mim)

Neste livro, a autora acompanha as trajectórias de várias gerações de mulheres licenciadas nos Estados Unidos da América ao longo do século XX e o modo como cada geração tentou balancear carreira e família. Goldin é muito clara. Após as barreiras formais de acesso a várias profissões terem sido eliminadas, da mudança clara de normas sociais, da introdução da pílula (que Goldin denomina “the quiet revolution”) e da eliminação das diferenças de educação formal entre homens e mulheres, a matéria que resta abordar é outra. O que falta transformar são as instituições sociais de cuidado (dos descendentes e ascendentes), assim como a própria estrutura do trabalho. Hoje, a maioria das mulheres quer combinar uma carreira e uma vida familiar. Não quer ter de escolher entre ambas. Atrevo-me a dizer que a maioria dos homens também. Mas, por um legado biológico e histórico, é hoje evidente que são as mulheres que acarretam a larga maioria dos custos negativos associados à reprodução da espécie humana. Todos gozamos dos seus benefícios, mas elas acarretam o custo.

Outro excelente e elucidativo estudo, publicado numa revista científica de grande qualidade, e realizado por três economistas que tiveram acesso aos dados da totalidade da população activa Dinamarquesa, mostra bem as origens actuais do hiato salarial entre homens e mulheres.

Na figura abaixo, podemos verificar como, até ao momento de ter filhos, homens e mulheres ganham os mesmos salários, trabalhando o mesmo número de horas. Quase não existe desigualdade de género. No entanto, no ano em que têm filhos e nos anos imediatamente posteriores, as mulheres têm uma quebra salarial abrupta, da qual nunca mais voltam a recuperar totalmente. É aqui que se encontra a desigualdade. Esta queda deve-se a vários factores: algumas mulheres decidem trabalhar menos horas ou deixam mesmo de trabalhar para acompanhar os primeiros meses das crianças. Com essa decisão a sua carreira nunca mais volta a ser o que era. Outras mulheres decidem alterar a empresa onde trabalham ou mudam de empregador – por exemplo, no estudo, várias mulheres escolhem ir para a função pública – depois de terem filhos, de modo a poderem conciliar de melhor forma carreira e família.

Fonte: Kleven, Landais and Søgaard (2019)

De forma muito intuitiva, os investigadores decompõem a desigualdade salarial entre sexos ao longo do tempo de acordo com a sua causa: deve-se a diferenças de educação, a diferenças devido à maternidade, ou a outras diferenças residuais, entre as quais a discriminação? Podemos ver que, hoje em dia, as desigualdades decorrentes de educação e de discriminação são muito pequenas. Mais de 80% da desigualdade tem origem na questão da maternidade.

Fonte: Kleven, Landais and Søgaard (2019)

Muitos leitores poder-me-ão responder que estas são as escolhas livres das mulheres. Não nego que muitas mulheres queiram fazer estas escolhas. Mas quantas são forçadas a fazê-la porque não têm alternativa para cuidar dos seus filhos? E os pais também não estariam interessados em desfrutar de mais tempo com os seus filhos, de conseguir um equilíbrio mais saudável entre carreira e família, ao invés de trabalhar longas horas e deixar o grosso da educação dos filhos às mães? Uma outra estrutura do trabalho – com mais flexibilidade horária e menos premiador das “horas extra” – beneficiaria a qualidade de vida de ambos: pais e mães.

Outros leitores mais conservadores dirão que está na “natureza biológica” das mulheres querer cuidar da família e dos homens querer progredir na carreira e que, portanto, estas desigualdades irão sempre existir. Na verdade, gostaria de saber se esses leitores também desejam abdicar de muitas outras características artificiais criadas pelas nossas culturas, como ter um Estado de direito, votar em eleições organizadas ou mesmo ler um livro ou um texto no Observador online, para regressarmos ao nosso primitivo biológico mais autêntico. No entanto, creio que esses leitores mais conservadores não têm nada a temer: se as mulheres fazem “naturalmente” estas escolhas, e irão sempre fazê-las, então elas vão continuar a fazê-las, mesmo que tenham total liberdade – formal e efectiva – para o decidir. Mesmo com uma rede extraordinária de infantários, outras políticas de licença parental ou outras regras laborais, as mulheres irão livremente escolher as mesmas coisas, pelo que não há qualquer perigo!

Ora, parece-me que, se todos desejamos a continuidade da espécie, então não deveríamos concentrar os seus custos nas mulheres, mas reparti-los de outra forma. Abstendo-me de considerações sobre se seria preferível fazê-lo através de instituições públicas, privadas, sociais ou municipais, o Estado que deve garantir uma rede verdadeiramente universal, gratuita e com qualidade de infantários e creches em todo o território nacional. Neste ponto – prometido sempre em campanha eleitoral, mas nunca concretizado – devemos ser intransigentes. Até porque, sabemos hoje, a frequência de infantários e creches com programas educativos com qualidade é um dos factores mais importantes para o sucesso escolar posterior das crianças. Grande parte das desigualdades educativas entre crianças já lá estão quando elas começam o primeiro ano do ensino básico. Para além disso, licenças de parentalidade distribuídas de forma mais semelhante entre pai e mãe também são também absolutamente essenciais para reduzir estas desigualdades.

O “Gender Wage Gap” é frequentemente descrito como homens e mulheres “receberem salários diferentes por trabalho igual”. No entanto, esta descrição não corresponde à realidade nem à maioria da desigualdade laboral entre homens e mulheres. A maioria da desigualdade decorre, directa ou indirectamente, das consequências negativas da maternidade. Assim, o feminismo contemporâneo não se deve focar tanto em questões linguísticas, representativas ou simbólicas, mas sim na conciliação entre carreira e família. Só assim poderemos tentar superar o pecado original.