Alexandre Herculano dizia que a história de Portugal podia ser confundida com a história dos Municípios. A relevância do municipalismo na obra do historiador foi de tal magnitude que chegou a fazer menção ao facto de que as intromissões do Estado Central na vida local, mais concretamente na vida dos indivíduos, poderiam ser encaradas com um propósito que visava não mais do que uma uniformização, prerrogativa essa que seria sempre vista como uma negação no que se referia aos direitos e pressupostos defendidos pelo liberalismo.

Ao longo do tempo, a importância dada aos Municípios foi-se pautando pela alteridade no que dizia respeito à sua primazia ou subalternização face ao poder central. Assim, através das Autarquias Locais, essa importância cingiu-se a um papel que em alturas de maior instabilidade era reforçado e em alturas de maior estabilidade era diminuído relativamente ao poder central.

O Município foi considerado, até 1820, como o principal elemento administrativo do sistema político português. A Monarquia Constitucional e a instabilidade que lhe esteve associada traduziu-se, depois disso, em múltiplas reformas administrativas, reformas essas que haveriam de falhar no almejo da construção de um Estado moderno ora idealizado pelos liberais. A Primeira República contribuiu, posteriormente, para a constância nas relações entre Estado e Municípios, deixando, no entanto, por cumprir a regionalização. Já no Estado Novo, a dependência de toda a administração pública ao poder central foi sobrevalorizada, sendo que somente a partir de Abril de 1974 é que as Autarquias Locais voltaram a readquirir a sua relevância e importância, tendo sido demonstrada, a partir daí, a vontade política necessária para as dotar de uma cada vez maior e mais alargada autonomia.

Dada a proximidade com os cidadãos, os Municípios são considerados pontos nevrálgicos de assumida importância para garantir a identidade territorial e proporcionar uma mais adequada gestão dos recursos disponíveis em beneficio das comunidades, tendo a inequívoca capacidade de poder alavancar o desenvolvimento das mesmas e contribuir decisivamente para o combate às muitas assimetrias territoriais ainda existentes no nosso país.

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A descentralização e transferência de competências, actualmente em curso, para os Municípios transformará, por certo, o modelo de organização e funcionamento da Administração Pública. Espera-se que essa transformação assente numa melhoria no que diz respeito à eficiência dos recursos disponíveis, sem comprometimento da despesa pública, bem como num incremento positivo no que se refere à promoção do desenvolvimento territorial e qualidade de serviços prestados aos cidadãos.

Espera-se que a consignação de novas competências aos Municípios, relacionadas com a Educação, Acção Social, Saúde, Protecção Civil, Cultura, Habitação, entre outras, permita uma cada vez mais envolvente participação cívica e aproximação da Administração Pública aos cidadãos. Espera-se que esse incremento relativo ao funcionamento da Administração Pública surja acoplado a um também cada vez maior escrutínio por parte dos cidadãos. Face a essa consequência, aos eleitos locais passará a ser exigida cada vez mais responsabilidade para garantir o bom funcionamento e o fornecimento das respostas mais adequadas aos novos desafios que são colocados às Autarquias Locais.

Exige-se, mais do que nunca, que a visão dos executivos camarários não seja turva e a sua ambição possa vir a fazer a diferença na vida quotidiana das pessoas.

Espera-se, mais do que nunca, confiança no âmbito das deliberações levadas a efeito pelos executivos camarários, pois sabemos que, infelizmente, nem sempre são essas deliberações convenientemente apreciadas e devidamente fiscalizadas à posteriori pelas assembleias municipais, quer por desconhecimento da amplitude das matérias em causa, quer por conveniência político partidária ou por mero desinteresse colectivo acerca das matérias em apreço, sendo o caminho mais fácil o de avalizar o que já foi deliberado em sede de reunião de Câmara.

É do conhecimento público que muitas Autarquias Locais, quer por fraca ou nula capacidade de gestão dos recursos humanos disponíveis, quer por falta de planeamento estratégico no que concerne à sua dinâmica interna face à descentralização, quer por outro tipo de motivações, têm vindo a optar pela celebração massiva de protocolos de colaboração com diversas Associações, bem como contratos interadministrativos com Juntas e Uniões de Freguesias. Através destes procedimentos as Autarquias cedem o exercício das suas mais recentes competências, decorrentes do processo inerente à recente descentralização em curso, a terceiros, por determinado período de tempo e sob determinadas condições, ora acordadas entre as partes envolvidas.

Poderiamos antever esta solução como uma mais valia sem precedentes para as referidas Associações, Juntas ou Uniões de Freguesias, afinal tal caminho poderia desembocar numa revitalização dessas entidades, podendo vir a imprimir-lhes dinâmica e vir a dotá-las de um propósito que, em muitas delas, já só estava elencado nos respectivos estatutos ou regimes jurídicos. Poderíamos ainda perspectivar que as Autarquias Locais poderiam, através destes mecanismos, estar a contribuir para um adequado funcionamento da rede concelhia que têm ao seu dispor ou que se encontrariam a estreitar laços e a actuar em prol do desenvolvimento concelhio, envolvendo todos para todos bem servir.

Mas será essa a melhor leitura a ser feita?

Haverá certamente Municípios com Juntas, Uniões de Freguesia e Associações com recursos capazes de cumprir os referidos acordos e contratos interadministrativos, assegurando assim o conveniente exercício das competências que advêm do processo inerente à descentralização, mas haverá certamente muitos outros Municípios, neste Portugal de incomensuráveis assimetrias, que não possuirão Juntas, Uniões de Freguesias e Associações com essas capacidades e cuja intervenção, no âmbito do exercício dessas competências, poderá sair gorada, por maior que seja a vontade de que tudo corra pelo melhor e por maior que seja a boa vontade e o envolvimento das pessoas que delas fazem parte.

Os contratos interadministrativos, mas sobretudo os acordos de cooperação, vulgarizaram-se ao ponto de se tornarem o penso rápido da descentralização. Resta saber se conseguirão salvar a concretização da dita descentralização ou se irão sufocá-la, perpetuando a existência de uma ferida sem cicatrização à vista, sendo que o insucesso desses pensos rápidos ditará, inevitavelmente, o prejuízo ultimo do cidadão no acesso a muitos dos serviços até agora assegurados, noutras circunstâncias, pelo Estado.

(Escrito de acordo com a antiga ortografia)