Numa pandemia os lugares mais perigosos são as igrejas e ainda bem. Grandes acontecimentos, como uma pandemia é, são apocalípticos no sentido que revelam coisas que se escondem na rotina. Quebre-se realmente a rotina e veremos o que andava disfarçado no dia-a-dia. Por exemplo: em grande parte gostamos de nos julgar prontos para riscos e aventuras. Mas mal apareceu uma doença nova, desmascarados fomos para adoptar imediatamente o discurso da segurança acima de tudo.

Não me tomo como corajoso. Quem me conhece, conhece os meus achaques. Sou fraca figura e não me meto em coboiadas. Quando era criança fui numa excursão da escola a uma base militar aérea (acho que foi mesmo em Tancos…) onde ofereceram uns saltos numas torres com cordas para simular a experiência de um pára-quedista, e a minha irmã gémea, a Sara, voluntariou-se. Fui ter com ela em censura acesa, prometendo-lhe que ia fazer queixa aos meus pais pela escandalosa ousadia dela. Ela saltou na mesma, eu chibei-me aos meus pais e o resultado foi o triunfo dela diante do vazio frouxo da minha denúncia. Dentro de mim há um filão de reclamações que cresce na proporção do prazer que os outros têm em tentar o que me assusta. Sim, tenho perfil para bufo armado em bófia.

A minha igreja desde o início da doença global adoptou as práticas da maioria das igrejas. Fechámos entre Março e Maio de 2020 e voltámos a fechar entre Janeiro e Março de 2021. Durante esses períodos usámos a internet para transmitir os serviços de culto que um pequeno grupo fazia na casa de oração. Agora em 2022 continuamos mascarados e em aspersões repetitivas de álcool-gel. O nosso convívio sofre há perto de dois anos por conta do vírus e quase todos se vacinaram. Não correspondemos a nenhuma das tristes caricaturas que, na nossa balofa superioridade moral europeia, fazemos de crentes fanáticos norte-americanos ou sul-americanos (sinceramente, até preferia). Lembrando Cromwell, confiamos em Deus e mantemos a nossa pólvora seca.

Mas, como dizia, os lugares mais perigosos são as igrejas e ainda bem. Igrejas são, por excelência, locais de contágio. Entramos nelas de uma maneira e não saímos na mesma. Somos infectados e influenciados. Nessa medida, a pessoa não vai à igreja para manter a saúde mas perdê-la. Quem cresce a ir à igreja vive na mais abençoada experiência de despersonalização. E quando vamos perdendo a pessoa que somos, perdemos também o instinto de sobrevivência. Vivemos para poder morrer. E isso é muito importante. Não vivemos para nos mantermos vivos. Viver para nos mantermos vivos é provavelmente a forma mais triste de existência.

Henry David Thoreau, o eremita-herói americano, bazou da cidade para viver um período importante no bosque. O que aprendeu escreveu no livro “Walden” que, mesmo que me irrite com algum proto-panteísmo, também me ensina muito. “As nossas casas são tão vastas e sumptuosas que os moradores parecem ser apenas vermes a infestá-las. (…) Poucas pessoas me foram ver por assuntos banais. As minhas companhias eram peneiradas pela simples distância da cidade. (…) Pensavam sobretudo em doenças, acidentes inesperados, e na morte; para eles a vida parecia cheia de perigos—mas que perigo pode existir não se cismando nele? (…) Se um homem está vivo, há sempre o perigo de poder morrer, embora desde logo se aceite que o perigo é proporcionalmente menor tratando-se de um morto vivo.” E é isto mesmo: se aceitarmos que morrer é o que nos acontece todos os dias, estamos mais prontos para realmente arriscar algo.

Tendemos a ter o maior prazer nos lugares onde não nos importávamos de morrer. E, sim, se pudesse escolher o meu, a igreja seria. Calculo a chatice de lidar com o meu cadáver em pleno culto. Mas os piores cadáveres no culto são os dos vivos, daqueles que entram e saem da mesma maneira: por infectar, imunes ao contágio.

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