É mais um sintoma da distância entre quem governa e quem é governado. Maria, nome fictício, vai todos os dias muito cedo para as aulas. Nunca sabe se consegue apanhar os transportes e chegar a horas. Autocarros cheios que passam sem parar e falta de informação. Tudo se agravou, para além do concebível, com a Carris Metropolitana. Muita preocupação com o marketing, as cores e a campanha, desprezo absoluto pelas necessidades das pessoas. E quando se tenta perceber quem são os responsáveis, o modelo intrincado que foi criado impede que se responsabilize alguém, e todos podem “sacudir a água do capote”.

É um autêntico puzzle. Em 2021 é criada a Transportes Metropolitanos de Lisboa (TML), uma empresa pública detida a 100% pelos 18 municípios da Área Metropolitana de Lisboa (AML). Como se pode ver pelo site, não faltam as frases promocionais sobre a missão e valores. “Está na hora de o transporte público estar no centro da mobilidade”, dizem. Temos tudo, incluindo uma gestão de três elementos: o presidente Faustino Gomes, e os vogais Sónia Alegre e Rui Lopo.

É esta empresa que passou a ter a competência, delegada pelos municípios, de gerir a rede de transportes nos 18 municípios. Para isso criaram quatro áreas, abriram um concurso públicos e cada área ficou com um operador. Com execpção da Alsa Todi, todos os outros operadores já funcionavam na área metropolitana de Lisboa. A Alsa Todi é formada pela Alsa, apresentada como “líder no setor de transporte rodoviário espanhol de passageiros” e pela transportadora Luisa Todi, “empresa luso-espanhola que integra o Grupo espanhol Transvia”.

E foi exactamente pelo operador estreante, a Alsa Todi, que começaram aquilo que só podemos designar como experiências com quem precisa de transportes. Alcochete, Moita, Montijo, Palmela e Setúbal viveram o inferno a partir de 1 de Junho e a situação está longe de estar estabilizada. Mudaram horários, os motoristas não tiveram formação, faltaram autocarros. E até faltam motoristas. Resumindo, lançaram os novos transportes sem garantirem que tinham o que era preciso.

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Em Outubro continuava a instabilidade, agora não apenas com a Alsa Todi. As comissões de utentes da península de Setúbal a manifestaram-se com a exigência básica de prestação do serviço de transportes em condições.

Criou-se uma estrutura super-complicada, com municípios, uma empresa pública e várias áreas com empresas privadas, de tal forma que ninguém é responsável. Todos têm condições para atirar as culpas uns para os outros e o cidadão comum, que precisa de transportes públicos, enfrenta o sofrimento quotidiano. Pode, no mínimo, responsabilizar o seu presidente de Câmara por não ter acautelado que o serviço era bem prestado, por ter delegado cegamente numa empresa recém-formada e, pelos resultados, sem competências para desenhar uma rede de transportes tão importante para as pessoas.

A TML parece ter-se preocupado mais com a cor dos autocarros e tiradas ambientais que se aproximam de “greenwashing” do que com a vida das pessoas. Se tivessem levado a sério a missão que dizem ter, de fazer do transporte público o centro da mobilidade em defesa do ambiente e no combate contra as alterações climáticas, teriam desenhado uma oferta adequada às necessidades das pessoas e até teria oferecido mais alternativas. Mas discursos promocionais são fáceis de fazer, dizer que se está com a defesa do ambiente também.

Com a aproximação da crise, com a redução do poder de compra por via da inflação, os transportes públicos vão ser ainda mais importantes. Mas ninguém parece preocupar-se genuinamente com isso, quando bons transportes públicos representariam uma poupança financeira considerável para as famílias e um contributo muito significativo para cada um de nós reduzir a pegada carbónica. Nem o Governo olha seriamente para esse tema. O Acordo de Rendimentos, por exemplo, apenas tem o compromisso de alargar o gasóleo profissional ao transporte público por iniciativa da CCP.

Enquanto os nossos governantes e a nossa elite mantiverem a cultura de novo rico, característica de país pouco desenvolvido, quem tem de ir trabalhar ou estudar de transportes públicos continuará a sofrer. Perceberiam melhor os sacrifícios que fazem os portugueses que usam transportes públicos se experimentassem, durante uma semana, andar nos movimentos pendulares de casa para o trabalho pela manhã cedo ou no regresso quando o sol já se pôs. Hoje já teríamos, certamente, melhores transportes públicos. E, com toda a certeza quem lançou a Carris Metropolitana iria preocupar-se menos com o marketing e mais com a qualidade do serviço.