1 As restrições custam? Custam muito, mas há uma coisa ainda pior do que as próprias restrições que nos são impostas: a ambiguidade de critérios. Uns podem tudo, ou quase tudo; outros não podem nada ou quase nada.

Muitos estão a ser tratados como aqueles filhos de pais que têm preferências e não as escondem. Ao favorito, ao “queridinho”, ao “menino da mamã” ou “do papá” deixam fazer tudo, perdoam tudo, fecham os olhos e não estabelecem limites. Para os outros, tolerância zero e autoridade máxima, com direito a castigo.

É dramático haver preferidos nas famílias porque promove a desigualdade e até a disfuncionalidade, provoca raivas e frustrações e, por vezes, gera verdadeiras revoltas. É um escândalo sermos tratados pelos políticos como filhos de 2ª categoria.

Os filhinhos queridos olham para as restrições com desprezo e presunção de superioridade, assumindo que nunca são para eles. Acham que é um excesso de zelo ou até uma tolice que não lhes diz respeito porque eles são muito mais espertos que os outros e sabem que podem sempre contornar as regras e fazer o que lhes apetece, seja ir à festa do Avante ou ver a Fórmula 1.

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Os outros cumprem, por agora, mas não perdoam nem esquecem.

E a revolta já começou a germinar, mesmo que os senhores governantes finjam que não percebem, fazendo-se cegos e surdos às desigualdades que estão a gerar. Rapidamente chegarão os dias em que não haverá pão nem razão em casa de uma esmagadora percentagem de portugueses e, nessa altura, já não poderão ignorar.

Pior do que não ter pão é nem sequer ter casa onde viver, pois as moratórias de crédito vão terminar e os layoff também hão-de acabar. Quando o mercado for inundado de desempregados de todas as idades e áreas de especialidade, muitos não poderão pagar hipotecas nem rendas de casa. E aí haverá estrondo e ranger de dentes. E os próprios políticos perceberão que há muito perderam a razão.

2 O consumo de ansiolíticos e antidepressivos disparou em flecha nestes últimos tempos e os estudos mais recentes provam que estamos todos mais tensos, ansiosos, exaustos e vulneráveis a problemas de saúde mental. Uns passaram a ter insónias, outros viram as suas perturbações alimentares agravadas, outros sentem-se incapazes de manter o foco no trabalho e nos estudos, sobretudo quando estão em casa, onde são obrigados a gerir um cúmulo inacreditável de tarefas domésticas e familiares, outros ainda passaram a viver em exaustão total, em colapso físico e mental, a um fio de cabelo de entrar em burnout.

O psiquiatra Pedro Afonso tem escrito muito sobre estes temas, neste mesmo jornal, e tem lançado apelos que vale a pena ouvir. Diria mesmo que os políticos o deviam seguir, pois ele, melhor que ninguém, sabe do que fala quando se trata de saúde mental e doenças do foro psiquiátrico. Graças a profissionais como Pedro Afonso e tantos outros Psis de excelência, já há muito percebemos que estas patologias não atingem apenas os “maluquinhos” que vemos internados em hospitais e hospícios.

Todos somos vulneráveis e basta ir a um destes lugares de internamento para ver pessoas exatamente como nós. Com as mesmas profissões, os mesmos graus académicos, a mesma formação (e, até ao momento do colapso, a mesma realização profissional!) e, inclusivamente, uma educação e um trem de vida muito parecidos.

Muitas, muitíssimas pessoas vão perder o seu emprego porque muitas, muitíssimas empresas vão fechar e, como diz o especialista, “tudo leva a crer que as doenças psiquiátricas irão continuar a aumentar”. Note-se que Pedro Afonso não diz apenas que, no futuro próximo, vai haver pessoas afetadas, o que ele vem sublinhar é que a escalada já começou e a progressão destas doenças é inevitável. E pode ter efeitos mais dramáticos e duradouros que a própria pandemia.

Cito Pedro Afonso: “As restrições à liberdade das pessoas e as medidas de confinamento também podem causar danos à saúde psíquica e têm que ser muito bem explicadas e justificadas. Ninguém aceita prescindir da sua liberdade se não estiver em causa um bem importante. Não se deve infantilizar a sociedade, tratando os cidadãos como sendo criaturas débeis, ao mesmo tempo que se tomam decisões políticas de saúde pública, por vezes difíceis de compreender.”

Faz um eco particular esta questão da ‘infantilização’, que fatalmente está associada ao excesso de autoridade e aos critérios discricionários. Castigo para uns, impunidade para outros, confusão para todos. Uns são obrigados a ficar recolhidos, confinados e isolados, enquanto outros podem dar asas à sua liberdade de movimentos e fazer-se ao caminho sob palavra de honra.

Por isto mesmo, não resisto e volto a citar o psiquiatra: “As incoerências de algumas medidas governamentais têm-se avolumado nos últimos tempos. Autorizam-se reuniões para festejos políticos, mas proíbem-se reuniões nas celebrações religiosas. Pode-se assistir à F1, mas ao futebol não. Afinal, quais os critérios científicos? Os aglomerados de pessoas são todos iguais, mas parece que há uns mais iguais do que outros.”

Ninguém sabe ao certo quais as evidências científicas que sustentam muitas das medidas tomadas, mas é demasiado evidente para todos, que neste enredo há filhos e enteados.