Hoje escrevo sobre a morte de um amigo. Não por ser meu amigo, mas por ser uma referência na sua área de conhecimento, por ter deixado obra feita, pública, e por ter influenciado o curso de muitas vidas. Por ser, ao mesmo tempo, um homem cheio de humanidade, bondade e integridade. Uma homem que mudou o mundo à sua volta e despertou a consciência para as grandes questões da ecologia. Não apenas a ecologia do Planeta, que sempre tratou com infinito carinho, mas de toda uma ecologia humana, que se traduz em relações mais limpas, mais saudáveis, mais afectivas e, também por isso, mais efectivas. O respeito do Francisco Varatojo pelas pessoas, pelos animais e pela natureza era comovente. Chegava a ser poético. Olhava para a realidade visível e invisível com olhos de maravilha, e penso que posso dizer que a sua religião era a Criação.

Francisco Varatojo morreu no fundo do mar, onde mergulhou tantas vezes para percorrer as suas profundezas em silêncio, naquele espanto mudo com que admirava e absorvia as maiores belezas que lhe eram dadas conhecer. Era um mergulhador muito experiente e ainda salvou uma vida antes de perder a sua. Fê-lo com gestos seguros e firmes, de quem soube sempre gerir primeiro as primeiras coisas. Acima de tudo, para ele, estava a vida e o bem-estar dos outros. Dar confiança e transmitir segurança foi o que fez melhor ao longo de toda a sua existência. Ninguém que o tenha conhecido pode negar esta realidade, pois o Francisco era uma inspiração para todos os que cruzaram o seu caminho.

Impressionava a sua atenção aos outros e a compaixão de que era capaz. Atento aos mais ínfimos detalhes, compreendia o que estava para lá do que os outros conseguem ver ou entender. Sabia coisas que mais ninguém sabe, e ensinava o que sabia com o mesmo entusiasmo com que aprendia. Supendia tudo o que estava a fazer se alguém chegasse com uma urgência, e estendia o tempo, como um manto protector, para ouvir, consultar e acompanhar as pessoas que precisavam dos seus conselhos. Muitos chegavam até ele doentes ou muito frágeis, mas o Francisco tinha o dom de os acolher e de lhes dar toda a atenção. Mantinha-se próximo e disponível como se cada um fosse a sua primeira e última prioridade.

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Era um homem sábio, muito sábio, que dedicou toda a sua vida a estruturar e divulgar um sistema de valores e conhecimentos holísticos que visam melhorar a saúde a quem opta por uma alimentação macrobiótica. Estudou em Boston com o japonês Michio Kushi, grande mestre e fundador da Macrobiótica no mundo ocidental. Foi seu colaborador e amigo até 2014, o ano em que o venerável e também extraordinariamente bondoso Michio morreu. Juntos fizeram equipa(s) pelo mundo fora e criaram centros de terapias alternativas. Francisco estudou filosofia oriental e ocidental, interessou-se profunda e elevadamente pelo desenvolvimento espiritual, apostou incessantemente no estudo e conhecimento da Macrobiótica e seus fundamentos, bem como na investigação nas áreas da saúde e da alimentação. Fundou em Portugal o primeiro e único Instituto Macrobiótico nacional que existe, e foi o seu carismático presidente até ao último dia.

Graça Castanheira, realizadora de cinema e colaboradora de longa data do IMP – Instituto Macrobiótico de Portugal – escreveu num texto, que publicou nas redes sociais, que o Francisco Varatojo nos “ensinou a possibilidade de nos tornarmos mais ágeis, saudáveis e transparentes, permitindo-nos viver de forma pacífica e cooperante uns com os outros e com o meio ambiente. Mas também nos mudou não só pelo que pensava e pacientemente nos explicava, ano após ano, mas pelo muito que fazia, pelo seu modo elegante de ser”.

Elegante e coerente, note-se, pois tudo no Francisco resultava dessa combinação fabulosa de estética, coerência e consistência. Francisco Varatojo tecia relações com grandes mestres e especialistas como médicos e investigadores, cientistas e poetas, filósofos e psicólogos, mas também se ligava de todo o coração a gente simples, com conhecimentos que nascem da tradição popular, colhendo de cada um o melhor do seu saber e dando de volta o melhor da sua arte de cuidar e acompanhar.

Entusiasta e muito contagiante, não fazia nada sozinho e soube sempre confiar, delegar e transmitir conhecimentos. Era, realmente, sábio e paciente, mas achava-se um eterno aprendiz, nunca um mestre. Tinha, ao mesmo tempo, muito sentido de humor e uma colossal abertura de espírito que o impedia de catalogar pessoas, de recusar outros sistemas de crenças ou rejeitar códigos de valores diferentes dos seus. Fundamental sem ser fundamentalista, soube sempre concertar muitas realidades distintas e era muito admirado e seguido por isso mesmo. O som das suas gargalhadas francas vai ficar a fazer eco para sempre e a sua passada ágil e vigorosa também nos fica na memória, pois a sua maneira de caminhar era única e fazia com que também nós quisessemos avançar no mesmo ritmo.

“O Francisco era exatamente como queria que o mundo fosse e, nesse sentido, foi um grande mestre e educador” escreve ainda Graça Castanheira, que o conheceu desde o início da sua aventura, nos primórdios do IMP, quando ainda quase ninguém sabia nada sobre a Macrobiótica e muitos desconfiavam do impacto deste tipo de alimentação na saúde.

Desprovido de artificialismos e sem a menor inclinação à futilidade, Francisco Varatojo construiu diariamente (diria mesmo que cimentou!), um instituto sólido que seguramente vai dar continuidade à obra que iniciou há muito mais de 30 anos. Paralelamente construiu uma família em que “todos são loucos de amor uns pelos outros”- continuo a citar a Graça Castanheira, que escreve com o mesmo sentido gráfico e cinematográfico com que filma. Pais e filhos formam uma família incrivelmente unida. Francisco teve sempre ao seu lado uma mulher admirável, terna, igualmente sábia e tão visionária como ele. De tal forma eram complementares que todos sempre consultaram um e o outro, falando indistintamente da Geninha e do Francisco. Parecia que um não ia sem o outro e ambos não se reconheciam sem os quatro filhos que tiveram.

O Francisco morreu no fundo do mar e os últimos instantes da sua vida serão para sempre um mistério, pois o seu ‘buddy’ emergiu à superfície graças à sua ajuda. Depois, já ninguém sabe mais nada. O choque por perdas inesperadas é tremendo e as mortes inexplicáveis são sempre dramáticas, sobretudo quando são prematuras. Francisco Varatojo tinha apenas 57 anos, uma idade em que para muitos a vida recomeça através de netos ou novos projectos. Há quem acredite que as coisas só acontecem quando já estamos preparados para que aconteçam. Será? Quem dera que fosse, tanto para os que partem como para os que ficam.

Dou comigo agora a olhar para a minha estante à procura de um livro que o Francisco me emprestou há uns anos, com o pedido expresso de lho devolver. Nunca lho conseguir dar de volta e um dia ele disse-me que encomendou um novo. Perdoou-me a falta com o seu sorriso habitual e disse para não me preocupar mais com o assunto. Nunca lho devolvi por ter feito muitos sublinhados a lápis. O livro tem um título eloquente que agora volta para o Francisco, com toda a propriedade e infinita gratidão. Falo de “The Power of Kindness”, uma das suas bíblias e porventura um dos seus melhores livros de cabeceira.

O poder da bondade resume a vida do Francisco Varatojo.