As novas moedas digitais chegarão a todo o lado porque a confiança no respetivo valor flui através da Internet, tornando-as mais competitivas do que as tradicionais. Não tenhamos dúvidas de que o novo dinheiro digital será dominante, sendo que vários governos estão já a criar as suas próprias moedas digitais dos bancos centrais (CBDC).

As novas moedas digitais nada têm a ver com o dinheiro eletrónico disponível há décadas em cartões bancários ou home banking. Diferentemente do dinheiro tradicional, as moedas digitais não servem só para ser trocadas por bens e serviços. Sendo programáveis, podem ser dotadas de funcionalidades específicas e usadas de outras formas. Ora, se existir livre concorrência entre moedas digitais centralizadas e descentralizadas, será o mercado a decidir quais serão essas formas. Caso contrário, as funcionalidades do dinheiro serão planificadas pelo poder central.

Para ter uma ideia do que isto significa, convém perceber que as futuras carteiras digitais serão apps tão programáveis como os murais do Facebook. Como sabemos, os perfis pessoais nas redes sociais não são neutros, mas sim influenciados pelos conteúdos e posts publicados. O intuito de tal influência é a rentabilização de anúncios personalizados. Da mesma forma, a contabilidade realizada nas carteiras digitais não será meramente financeira, sendo que também o dinheiro será influenciado de forma personalizada para recolher dividendos económicos e políticos.

Num mundo desprovido de “máscaras digitais”, o balanço inscrito na carteira digital de cada cidadão será multidimensional e resultará do cruzamento de dados e metadados (dados acerca dos dados) sobre o seu comportamento enquanto consumidor no mundo físico e no mundo digital. Na China, já existe um sistema de “créditos sociais” que determina e exibe nas redes sociais o ranking social dos cidadãos. Cruzando estes dados com as carteiras digitais de cada cidadão, este ranking ditará também o que ele poderá ou não comprar. Trata-se pois de um novo paradigma na vigilância e controlo dos cidadãos. Estas e outras CBDC poderão inclusive ser programadas com juros negativos para incentivar o consumo e delapidar as poupanças de uma população cada vez mais dependente do Estado, à boa maneira socialista.

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Acredite-se ou não, os governos poderão identificar o proprietário de cada CBDC e programar remotamente as suas carteiras digitais. Assim, governos com pendor autoritário irão controlar o consumo dos seus cidadãos e de quaisquer outros consumidores que possuam as CBDC em questão. Afinal, o dinheiro digital é global, sendo indispensável que os governos democráticos resistam à tentação do poder e saibam interpretar o enquadramento ético substancialmente diferente suscitado por tão extraordinária evolução tecnológica.

As moedas digitais podem funcionar em redes blockchain públicas ou privadas. Acontece que as moedas estatais centralizadas, supostamente públicas, são transacionadas em redes de acesso condicionado (por exemplo, Yuan Digital), enquanto as moedas digitais descentralizadas (criptomoedas), supostamente privadas, são transacionadas em redes públicas (por exemplo, Bitcoin). Este “paradoxo” pode dificultar a compreensão, em tempo útil, do novo paradigma político-económico.

A verificação das transações numa rede blockchain é efetuada pelos respetivos membros, sendo que a principal diferença entre redes blockchain públicas e privadas é o grau da liberdade de acesso ao mecanismo de validação das transações nelas efetuadas. Enquanto nas redes blockchain públicas o acesso é livre e todos os membros da rede têm autonomia para verificar as transações e votar sobre a respetiva validade, nas redes blockchain privadas, pelo contrário, a participação em tal escrutínio é condicionada pelos administradores da rede. Obviamente, quanto mais subordinada ao regime político for a participação nestas redes, menos democráticas e mais discricionárias serão as decisões nelas tomadas e executadas. Neste sentido, a moeda digital do governo chinês é um caso paradigmático que deverá resultar no equivalente a senhas de racionamento programadas de forma personalizada pelo regime.

À semelhança da pandemia viral que nos tem afligido, esta nova ameaça não ficará confinada à China e tornar-se-á global. Também na Europa, as moedas digitais serão o vetor financeiro do poder político (tem sido ao contrário), tornando a descentralização do dinheiro imperativa do ponto de vista democrático. Por isso, acredito que apenas uma livre concorrência entre as moedas digitais patrocinadas pelos governos e as criptomoedas oriundas da sociedade civil protegerá a iniciativa individual e a liberdade de escolha, salvaguardando a democracia.

Entretanto, num contexto liberal, esta evolução tecnológica pode ter um impacto muito favorável. Graças à versatilidade e à transparência das transações realizadas com moedas digitais descentralizadas, estamos perante a oportunidade histórica de compatibilizar incentivos financeiros individuais e comunitários. Na verdade, as moedas digitais descentralizadas podem servir para promover a ação coletiva ao invés do coletivismo. Para tal, a sociedade civil deve ser autorizada a inovar, criando unidades de valor (criptomoedas e outros tokens digitais) com funcionalidades específicas para dinamizar o empreendedorismo sustentável em ecossistemas comunitários (como pode ver também aqui). Como refere Joseph Lubin, cofundador do sistema operativo global descentralizado Ethereum (cuja criptomoeda, Ether, é a mais valiosa a seguir ao Bitcoin), estamos a transitar para a “era da comunidade”.

Claro que este cenário de liberdade não se concretizará se o mundo livre for contagiado pela lógica estatizante e monopolista do dinheiro digital que vem da China. Assim, para a democracia não desfalecer perante tal pandemia digital, há que prosseguir a descentralização iniciada com as criptomoedas e defender a liberdade concorrencial entre as moedas digitais patrocinadas pelo Estado e pela Sociedade Civil.

Em muitos países ainda não há legislação sobre criptomoedas, pelo que os respetivos cidadãos podem utilizar livremente as suas chaves criptográficas privadas para as transacionar. É o que acontece em Portugal e na maioria dos países. No entanto, esta liberdade não é um direito adquirido; enquanto certas nações, como a Ucrânia e El Salvador, atribuíram curso legal às criptomoedas, aceitando implicitamente a utilização de chaves privadas pelos cidadãos, nos regimes autoritários, com óbvio destaque para a China, a tendência é proibir tais “máscaras digitais” e outras veleidades democráticas.

É possível que a palavra de ordem venha a ser proibir estas “máscaras digitais”, mesmo enfraquecendo a privacidade e definhando as democracias. Mas a defesa da liberdade merece a nossa atenção. Tal como usamos máscaras de proteção para defender a saúde pública, não devemos abdicar de “máscaras digitais” que protegem a privacidade e preservam a liberdade. A democracia não pode sucumbir face ao poder viral do dinheiro digital.