1. O senhor Ângelo tem 79 anos. Como muitos outros idosos, tem o azar de morar naquele Portugal esquecido a abandonado (no seu caso, chamado Vale da Ameixoeira, concelho da Sertã) que só entra no radar dos media quando acontece uma desgraça. Foi o que lhe aconteceu recentemente. Acordou a meio da noite e viu a mulher desmaiada no chão. Ainda a recuperar do duplo infortúnio de um acidente cardio-vascular e do inferno dos fogos de outubro que varreram a Sertã e deixaram o interior do concelho sem rede de telemóvel e sem telefone fixo, o sr. Ângelo não tinha nenhum meio de chamar os bombeiros. Sem outro remédio, pôs-se a caminho a meio da noite da casa mais próxima. Com apenas 40% de visão (sequelas do AVC) e sem iluminação pública que facilitasse a visão do caminho mais acertado, este homem corajoso ia batendo com um pau na estrada alcatroada para encontrar o seu caminho. Demorou 1 hora a chegar à casa da sua vizinha mais próxima para pedir ajuda. A ambulância foi chamada mas já era tarde de mais. A mulher do sr. Ângelo tinha morrido com uma insuficiência cardíaca.

Esta história trágica foi contada pelo Jornal de Notícias na última 6.ª feira e revolta qualquer um. Pela injustiça, pela pobreza mas, acima de tudo, pelo facto de passados 8 meses após os fogos de Pedrógão Grande e de quatro meses após os incêndios no centro e no norte do país que provocaram um total de mais de 110 vítimas, o Estado persiste em não corrigir os erros cometidos. Enquanto a Altice (gestora da rede fixa naquela zona) e a NOS trocam acusações sobre quem é responsável pela substituição das infra-estruturas das telecomunicações, o regulador Anacom está no terreno a fazer ações de fiscalização para perceber onde há falhas de rede e de serviço. Aliás, nem a Unidade de Missão do Interior sabia que ainda existem zonas do país afectadas pelos incêndios que não têm ligações à rede de comunicações fixas.

Portanto, já não estamos a falar de uma possível inércia do Estado quanto aos pormenores de muitas placas de sinalização nas zonas afectadas pelos incêndios ainda não terem sido substituídas. Mas sim de uma metáfora de isolamento e desertificação de áreas extensas do nosso país que destrói qualquer ideia de coesão territorial.

2. Vejamos outro exemplo: a contratação de meios aéreos de combate aos fogos florestais. Estamos a menos de um mês de iniciarmos a Primavera mas o Governo está (muito) atrasado na resolução do concurso público lançado. Do aluguer de 50 aeronovaves pretendidas por cerca de 60 milhões de euros, o Estado só deverá contratar 10 por um pouco mais de dez milhões de euros. O que obrigará ministro Eduardo Cabrita a proceder a ajustes directos antes do início das fases mais críticas dos combates aos incêndios para ter a frota de aeronaves necessária. Isto se não ocorrerem mais atrasos, como aconteceu em anos anteriores.

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Não quer isto dizer que o Governo de António Costa seja de uma inércia total e absoluta depois da péssima forma como geriu as consequências dos fogos de Pedrógão Grande e da zona do centro. O já famoso email da Autoridade Tributária a informar (estranhamente em nome do Ministério da Administração Interna e do Ministério da Agricultura) que os contribuintes têm até 15 de março para limpar “o mato 50 metros à volta da sua casa e 100 metros nos terrenos à volta da aldeia”, sob pena de pagarem multas que podem variar entre os 140 a 5 mil euros, tem a vantagem de pôr em prática as regras estabelecidas numa lei aprovada em 2006. O mesmo se diga para a responsabilidade da entrada em cena das autarquias, caso os particulares falhem as suas responsabilidades.

Podemos argumentar que estas medidas estão a ser postas em práticas à pressão e a reboque das tragédias de junho e de outubro mas numa área em que os sucessivos Executivos nada fizeram nos últimos 30 anos, a pressão será sempre pouca para recuperar os anos de incúria a que o Estado sentenciou a floresta e o interior do país

3. Todos os pontos anteriores já deveriam ter tido um aprofundamento da parte do PSD como principal partido da oposição mas na primeira semana de Rui Rio como líder ouvimos falar (muito) mais de todas as polémicas que rodeiam Elina Fraga, do que propriamente de oposição. A saber:

  • Fortemente criticada e assobiada no momento em que tomou posse no Congresso;
  • Sob investigação criminal por atos alegadamente praticados enquanto bastonária da Ordem dos Advogados;
  • Imitou o estilo de José Sócrates e acusou os jornalistas de perseguição pessoal, acrescentando que “os jornalistas não revelam as fontes porque não são obrigados a fazê-lo”, insinuando portanto que essa obrigação totalitária devia existir;
  • Classificou o Governo do PS como um Executivo que a “repugna” por ser de esquerda, esquecendo-se que o ‘seu’ líder quer dialogar com António Costa.
  • E ainda teve direito ao esquecimento de uma outra vice-presidente do PSD. Isabel Meireles aprovou a auditoria que está na origem da investigação a Elina Fraga mas diz não se recordar de o ter feito.

Como se não bastassem todos os episódios do furacão Elina, Rio ainda teve de lidar com uma eleição para a direção da bancada parlamentar da qual nasceu, por culpa própria, um líder parlamentar fragilizado chamado Fernando Negrão. Depois de garantir que só aceitaria o mandato se ganhasse as eleições (em que era candidato único) com 50% mais 1, teve um resultado de apenas 39% (em que os votos brancos e nulos atingiram os 53 votos em 88 possíveis). Dando o dito por não dito, Negrão assumiu de forma despudorada, encarando os 32 votos em branco como um “benefício de dúvida” dos seus colegas.

Pior: entrando em contradição precisamente com o que Rui Rio (e Elina Fraga) pensam sobre a procuradora-geral Joana Marques Vidal, Fernando Negrão preferiu elogiar ao Expresso todo o mandato da procuradora-geral, em vez de seguir o discurso do líder e falar sobre os perigos da alegada violação do segredo de justiça. “Devemos louvar a atuação do Ministério Público (…) no que diz respeito a uma maior sensibilidade, maior conhecimento, maior formação no que respeita à luta contra o crime económico-financeiro e principalmente uma visão da Justiça, que olha para o cidadão, seja ele quem for, de forma igual”, afirmou.

Este é o resumo da primeira semana de liderança de Rui Rio. Uma primeira semana demasiado caótica para repetir-se nos próximos tempos, sob pena do PSD não descolar nas sondagens.

4. Além de António Costa, há uma segunda pessoa que está muito satisfeita com a estratégia de Rui Rio. Chama-se Assunção Cristas e, se o novo líder do PSD mantiver este rumo de desorientação, é possível que comece a ser encarada como a líder de oposição.

A líder do CDS, ao contrário de Rui Rio, é uma política muito pragmática e não acredita que António Costa vá colocar em risco a geringonça a ano e meio das eleições para ter acordos à direita em matérias em que está mais próximo do PCP e do BE (como a segurança social ou a legislação laboral) do que do PSD e do CDS. Por isso mesmo, Cristas deverá apostar num posicionamento crescentemente agressivo face ao Governo de António Costa para enfatizar aos olhos do eleitorado as suas diferenças face a Rui Rio — uma estratégia que começará a ser colocada em prática já no Congresso do CDS nos dias 10 e 11 de março.

Para já, e na maioria dos debates quinzenais, é Cristas quem tem assumido esse papel, com intervenções criativas e contundentes — um facto que tenderá a repetir-se, se tivermos em conta que o novo líder parlamentar do PSD chama-se Fernandes Negrão e quer fazer “sessões de trabalho” com António Costa. Esperemos que não sejam tão intensas como aquelas que o PCP e o BE promovem no hemiciclo com guiões pré-preparados.

É talvez a pensar em cidadãos como o senhor Ângelo que o Presidente Marcelo fez saber este fim-de-semana através do Expresso (na véspera de receber novamente Rui Rio em Belém) que o tempo do PSD deve ser de “demarcação” face ao PS. Por uma razão simples que já aqui se escreveu: não haverá acordos estruturais entre PS e PSD a um ano e meio de eleições porque nem António Costa nem o PCP e o BE colocarão agora em causa a Gerigonça. Só Rui Rio parece que não quer ver essa evidência.