Num almoço de sábado em família, enquanto esperávamos que o pedido fosse servido, a minha filha e eu entretivemo-nos a jogar à Forca, um jogo de palavras, em que um dos jogadores tenta adivinhar um nome, um país, um animal… enquanto o outro vai pedindo letras ao acaso, até estas formarem sentido e revelarem o vocábulo “escondido”. À medida que as letras vão sendo pedidas sem sucesso, vão-se acrescentando membros ao pobre enforcado, cuja vida depende da capacidade adivinhatória ou da sorte do jogador desafiado.

A dada altura, escolhemos a categoria VIP. Por marotice, pensei num nome de uma pessoa que nos últimos tempos desafiava a minha filha a aprender mais sobre o xadrez da paciência e da assertividade. Quando após várias tentativas para deslindar a misteriosa “personalidade”, que nos ocupava bastante tempo juntas, foi revelada, soltaram-se gargalhadas, meio incrédulas meio zangadas, por ter considerado “especificamente aquela” uma “Pessoa Muito importante”. A “vingançazinha” não se fez esperar. E os condenados lá foram desfilando…

Naquele jogo, em que nos entretivemos a arrancar risos soltos com aquela brincadeira, compreendi quanto tempo se desperdiça a atribuir o papel de protagonista a personagens secundárias no nosso dia a dia.

Se é verdade que a vida resulta das nossas escolhas – e estou em crer que sim -, de que forma investimos o nosso tempo? E com quem? Será que atraímos homens e mulheres com quem nos cruzamos? Não creio. Seremos responsáveis pela importância do papel que desempenham na nossa vida? Definitivamente, sim somos. Rodeemo-nos de pessoas admiráveis que nos “abanem” ao ponto de ultrapassarmos as nossas limitações e vejamos o que acontece.

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Muito se tem escrito sobre relações de codependência, em que vítimas e algozes se vão alternando nas relações, numa busca por segurança, por reconhecimento, por afecto, por sentido de vida. Todos estes motivos têm um substrato comum: ser-se suficiente. Quando a escassez existe, consegue entender-se com maior facilidade que “falta qualquer coisa”. Porém, quando essa sensação de “estar aquém” persegue quem dispõe de prosperidade financeira, de fama e legiões anónimas de fãs e seguidores… que explicação se poderá encontrar? Mesmo entre aqueles que têm fé.

Há algum tempo, era vulgar falar-se de uma pandemia de ansiedade de perfeccionismo, que se sabe, racionalmente, ser-se incapaz de atingir… mas e quando essa busca assenta sobretudo na percepção de não se ser suficiente? Quando a vida é vivida de acordo com a invisibilidade aos olhos dos outros e o antónimo de amor é indiferença? Sobejam lendas do entretenimento que deixaram esta vida por opção: o desencanto e a necessidade de supensão da dor foram mais fortes do que qualquer motivação que pudessem ter naquele momento. O seu valor, cotado tantas vezes, com zeros à direita que não se sabem ler… de nada valeu porque, afinal de contas, atrás do barulho das luzes, eram apenas humanos num contexto em que isso não bastava. Noutras casas, menos “afamadas”, quantos alojam o inquilino solidão.

Saber ultrapassar as fragilidades pessoais e encontrar nelas as fortalezas de uma história assinada por cada um, não é um desafio. É sim “o” verdadeiro desafio, em que o perfeccionismo é destituído pela integridade de saborear o caminho, muitas vezes tão diferente do idealizado. Registos como o de Viktor Frank, Etty Hillesum e Edith Eva Eger, prisioneiros em cenários desumanizados pelo horror dos campos de concentração, colocam qualquer leitor no sítio. É sobre coragem e liberdade, perdão e recomeço que nos escrevem. E, como estes, quantos heróis se cruzam no nosso caminho, diariamente, capazes de pôr um “era uma vez” a seguir a um ponto final; que se armam de cavaleiros e conseguem o milagre de encontrar o céu na terra, onde dantes só encontravam o Inferno de Dante.

Recordo com especial carinho, um testemunho de um colega de formação, que num breve instante, se apresentou diante de uma turma de desconhecidos, dizendo que fora um excelente comercial e gestor de equipa, ao ponto de ser insubstituível… quando se viu obrigado a parar por força de um esgotamento. Dizia ele que foi naquele momento que entendeu o quão mau líder era. Esta história marcou-me: pela humildade e pela generosidade de fazer dessa aprendizagem um exemplo para quem com ele convive e para quem tem a sorte de o ter atualmente como coach.

De volta à mesa do almoço, olho para a minha filha e abraço-a, com esperança de conseguir transmitir-lhe “o presente daquele enforcado”: que as decisões na vida somos nós que as tomamos, que a forma como investimos o nosso tempo é da nossa responsabilidade, que temos sim uma missão na vida: sermos inteiros naquilo que fazemos e que os recomeços a todo o momento se iniciam com um primeiro passo trilhado pelos nossos próprios pés.